As viravoltas da Paixão (Crônica da manhã)

26/05/2015 at 12:38 (*Liberdade e Diversidade)

maria da gloria sá rosaMaria da Glória Sá Rosa*

A paixão é a mola e mestre de todas as realizações, que deixam sua marca no que fizemos de importante. Comigo aconteceu na aula de prática de ensino de Espanhol que deveria apresentar à professora Emília Navarro, justificando minha capacidade no ensino da Língua de Cervantes.

glorinha

Antes de acrescentar meu gosto pela língua, quero destacar os dias e noites que passei repassando os versos “Yo Voy Mirando Caminos”, de Antonio Machado, como se percorresse as tardes de Espanha à semelhança de um “viajero en cuanto a tarde cayendo está”.

Imaginava a vergonha que passaria se os alunos me perguntassem alguma coisa que não fosse capaz de responder. E quanto mais pensava mais me entregava com interesse aos assuntos de gramática e literatura que emanavam do texto. O que mais me aterrorizava era a nota de Emília Navarro, uma professora cujo olhar temíamos, cuja análise nos deixava sem dormir. Afinal chegou o temido dia. Consciente do amor pela língua, aparentemente calma, encontrei os alunos, meus colegas observadores, além dos olhos da fera Emília, que escrevia sem parar, provavelmente observações a respeito de minha pobre aula, que recebeu dela apenas algumas leves observações e um simples 8 (oito) que, é claro, julguei imerecido. Comentando com minha colega o medo que me gelara a alma, as inúmeras observações que Emília escrevera, ela rindo, comentou: ora, ela apenas estava escrevendo com muita paixão uma carta ao namorado, com quem ali- ás se casou no ano seguinte. E acrescentou irônica: espichei o pescoço e vi com o rabo do olho “tu eres mucho más sensillo que Yo”.

Alguns anos mais tarde, visitando a PUC, escutei uma voz com sotaque castellano que imediatamente identifiquei: era dela, de Emília, só podia ser.

Abraçamo-nos e ela me confessou que aos 82 anos ainda dava aulas de Espanhol na mesma instituição em que me formara. Reconheceu-me alegre, mas nossa conversa girou apenas nos vultos a que ela passara a vida se dedicando: EL Quijote, os autores medievais, Garcia Lorca, os latino-americanos que tanto admirava.

Pequena, velhinha, era a mesma Emília, cujo lema era “Callate o Salga”, digno da disciplina exigida em suas aulas. A paixão eliminara de sua vida qualquer outro desejo que não fosse o amor ao ensino de Espanhol. Nunca mais a vi. Saí dali pensando: quantos livros, quantos professores ilustres, quantas teses, discursos, quantos anos dedicados ao estudo de uma língua e sua literatura resultaram da paixão dessa mulher que abandonara qualquer tipo de prazer para entregar-se a uma paixão singular.

Foi graças a ela que eu me tornei professora de espanhol e, ao lado da professora Maria Adélia, implantamos o espanhol no Curso de Letras da UFMS.

Aquela aula de prática de ensino de 1949 marcou minha vida. Teria sido verdade o comentário de uma colega a respeito da pretensa carta escrita por Emília? Algum tempo depois, uma colega me contou que fora uma brincadeira da classe a “pretensa” carta escrita por Emília durante minha aula de prática de Espanhol. Em pensamentos, pedi perdão a minha professora por ter acreditado em tamanho desprezo: a quem devia tantas pegadas nos caminhos da paixão?

*Professora, Escritora, Membro da Academia Sul-Mato-grossense de Letras

**Crônica publicada hoje (26/05) no jornal Correio do Estado

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