O boi e os gases-estufa

30/11/2009 at 18:33 (Hermano de Melo)

Hermano de Melo*

Desde 2006, circula na mídia a ideia de que os ruminantes, especialmente o gado bovino, por meio da sua flatulência – leiam-se arrotos e puns – seriam responsáveis por despejar na atmosfera uma parcela significativa de gases efeito-estufa, o que contribuiria de forma decisiva para o aquecimento global. Conforme relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), intitulado “A grande sombra do gado”, “os gases emitidos por excrementos e flatulência de bovinos, ovinos e suínos, por desmatamento para formar pasto e a energia gasta na administração do gado respondem por 18% dos gases-estufa circulando atualmente no mundo”.

Mas o relatório vai mais longe e diz que a atividade agropastoril é responsável por 9% da emissão mundial de CO2, 65% da emissão de ácido nitroso (NO2) e 37% do metano (CH4), que é 23% mais tóxico que o CO2 e vem do sistema digestivo dos ruminantes. O documento assinado por Henning Steinfeld, chefe da FAO para o setor, conclui que “o custo ambiental por cada unidade de produção agropecuária tem de cair pela metade nos próximos anos, apenas para impedir que a situação piore”.

Em artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, de 07/05/2007, porém, e intitulado “Ecologia não combina com ideologia”, Xico Graziano mostrou, que os números apresentados pela FAO são enganosos e não suportam uma análise mais acurada. E exemplifica: “Consta do relatório que uma vaca pode arrotar até 500 litros de metano/dia. Como o rebanho bovino mundial atinge 1,4 bilhões de cabeça, tal volúpia gasosa seria um desastre ecológico. Dados da Embrapa, no entanto, mostram que um boi libera cerca de 60 quilos de metano ao ano ou quase 30 gramas por dia, e não 500 quilos como diz o relatório da FAO”. E conclui: “É errado considerar que a agropecuária seja a maior responsável pela emissão dos gases-estufa. De fato, as emissões veiculares e as chaminés nas metrópoles são as grandes vilãs do aquecimento do Planeta”.

Mas a histeria sobre a emissão de gases-estufa pelo trato intestinal dos bovinos chegou a tal ponto que, em 2007, o cientista alemão Winfried Dockner, da Universidade de Hockenheim, desenvolveu a primeira pílula antiarroto para vacas do mundo! Citando o relatório da FAO, o cientista confirmou que o arroto dos ruminantes responde por 4% das emissões de metano do planeta e como o consumo de carne cresce a tendência do aumento das emissões seria inevitável. Na ocasião, Dockner acreditava que o nível de metano seria reduzido de 4 para 2%, mas ele não obteve sequer patrocinadores interessados em sua idéia.

Em outubro de 2008, num relatório de 600 páginas encomendado pelo governo australiano, o assessor e economista Ross Garnaut pediu que os australianos substituíssem a carne bovina e de carneiro por derivados do canguru para ajudar a proteger o planeta dos efeitos do aquecimento global (Folha Online, 03/10/08). E na Suécia, conforme reportagem da Revista Época (23/10/09), o consumo de carne vermelha pode estar com os dias contados. Alguns suecos afirmam, inclusive, que sentem uma sensação de culpa quando consomem alimentos derivados do gado. E se as novas orientações alimentares forem seguidas a Suécia pode reduzir entre 20% e 50% a emissão de gases na produção de alimentos.

E mais recentemente (27/10/2009), o jornal londrino The Times divulgou declarações de Lord Stern of Brentford, professor da London School of Economics que, baseado no fato do gás metano liberado pelos rebanhos bovinos e ovinos ser mais efetivo como gás de efeito estufa que o gás carbônico, propôs que a humanidade pare de comer carne! Segundo ele, os rebanhos são gigantescos hoje em dia para suprir a demanda crescente de carne pela humanidade, cujo número atinge hoje a cifra de mais de 6 bilhões de habitantes. E completa: “A carne é um desperdício de água e cria uma grande quantidade de gases efeito-estufa. Ela coloca uma enorme pressão sobre os recursos do mundo. Uma dieta vegetariana é melhor”.

Não há dúvida que a criação de bovinos na sua forma extensiva é um dos vilões responsável pelo aumento dos gases-estufa na atmosfera e do conseqüente aquecimento global. Mas isso se deve muito mais ao desmatamento e a queima de vegetação que se promove antes de sua instalação do que pelos arrotos e pumpuns eliminados pela flatulência bovina. Estes são absorvidos numa boa! E isso é válido tanto em grandes áreas da região amazônica quanto aqui no cerrado brasileiro. Daí, no entanto, a propor a eliminação da carne bovina e ovina da dieta humana vai uma distância muito grande! Será que o aquecimento global que acontece atualmente no mundo não seria mais uma crise do modelo civilizatório atualmente implantado em países com desenvolvimento acelerado como China, Índia e Brasil?

A resposta a essa pergunta pode vir da reunião que acontece em Copenhague, Dinamarca – a COP- 15, de 7 a 18 de dezembro próximo, onde os líderes mundiais discutem um novo protocolo de emissões de gases efeito-estufa que substituirá o Protocolo de Kyoto. Cerca de 20.000 delegados de 192 países devem estar presentes ao encontro, inclusive o presidente Lula. E Lord Stern é taxativo: “Copenhague é uma oportunidade única para o mundo se libertar de sua trajetória catastrófica atual, ou seja, reduzir pela metade as emissões globais de gases efeito-estufa até 2015 e passar das atuais 50 para 25 gigatoneladas”. É ver pra crer.

* Médico-veterinário, Escritor e Acadêmico de Jornalismo.

**Publicado no jornal Correio do Estado em 30 de novembro de 2009.

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O mal do século

21/11/2009 at 20:10 (Autores Convidados)

Hoje li um texto muito interessante. Era um tema muito comum para mim, tratava sobre discriminação racial na televisão e como a mídia é usada para perpetuar velhos preconceitos. Claro que eu já tinha conhecimento da maioria das coisas citadas pela autora. Mas o que mais chamou minha atenção foi a indignação daquelas palavras. Pois embora eu soubesse tudo o que estava escrito em momento algum pensei em manifestar minha indignação como a escritora.Creio que isso se deve a uma doença dos tempos modernos: o comodismo.

O comodismo é uma infecção transmitida pelo vírus mediocridade e pode atingir todo tipo de pessoa e em qualquer faixa etária. O vírus afeta a capacidade dos neurônios de interpretação, provocando confusões entre o que é de fato importante, por exemplo: de repente o futebol parece tão mais importante que o caso de sexismo dentro de uma universidade e aqueles debates da faculdade sobre temas cotidianos são tão cansativos. Depois da confusão mental, passa o vírus a atacar o sistema límbico (o responsável pelas memórias de curto prazo), tornando mais difícil armazenar dados importantes como aquela barbaridade que você leu no jornal sobre o governo ou o nome daquele governante que foi pra CPI e ano que vem vai pedir seu voto novamente. A doença também ataca a visão, torna difícil enxergar a verdade dos fatos, o doente começa a ignorar o paradigma de felicidade imposto nas propagandas, por exemplo. Em seguida parte pra capacidade motora e deixa a pessoa completamente incapaz de fazer qualquer coisa pra mudar o meio em que vive ou até mesmo a sua própria vida, este sintoma é evidente em pensamentos como: “protestar não leva a lugar nenhuma” ou “ah, nem vou naquela conferência chata porque isso nunca dá em nada”; este estágio costuma ser terminal. O leitor atento certamente notou que o comodismo quando não aleija a vítima, mata-o. Normalmente decapita o seu senso crítico e mata uma grande parte da personalidade do enfermo, que acaba virando um servidor público com cara emburrada ou um pseudo-profissional que acha que seu trabalho só serve para ganhar dinheiro e seu diploma é a melhor coisa que você pode conseguir na universidade.

Felizmente, com o tratamento certo essa patologia tem cura. E o tratamento nem é difícil, basta algumas doses diárias auto-análise para conhecer quem você é de fato e coragem suficiente para enfrentar a si mesmo. Basta lembrar da receita dada pelo Dr. Renato Manfredini “Vocês vão fazer alguma coisa pra mudar as suas próprias vidas? Eu cheguei à seguinte conclusão: não adianta consertar o resto, tem que consertar agente..ajuda pr’a caramba!

Pyro

Em 16/11/2009

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O trator e o laranjal

06/11/2009 at 09:15 (Hermano de Melo)

Fonte: Jornal Nacional, 05/10/2009 – G1.com.br

Hermano de Melo*

Na noite de segunda-feira (05/10/2009), o Jornal Nacional da TV Globo mostrou imagens captadas de um helicóptero no momento em que um trator conduzido por lideranças do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), derrubava uma fileira de pés de laranjas da fazenda Santo Henrique, da Cutrale, em Iaras, interior de São Paulo. Calcula-se que de 3 a 7 mil pés de laranjas foram destruídos de um milhão plantados. Na ocasião, a coordenadora do MST, Claudete Pereira de Souza, justificou assim a ação: “Não destruímos nada, retiramos os pés de laranja para garantir o plantio de feijão, porque ninguém vive só de laranja”. As imagens, porém, foram chocantes e serviram de munição para os que não querem ver a reforma agrária implantada no Brasil.

A reação foi imediata. No dia seguinte, a justiça de São Paulo determinou a reintegração de posse da fazenda invadida pelas 250 famílias de Sem-Terra desde o dia 28 de setembro. Tanto o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, quanto o presidente do INCRA, Rolf Hackbart, condenaram a ação do MST.“Uma imagem grotesca, injustificável sob qualquer ponto de vista”, disse Cassel. Hackbart acrescentou: “O movimento tem errado muito e espero que uma situação grotesca como essa o faça refletir sobre suas ações”. E o presidente Lula classificou o ato do MST como de “vandalismo” (JC Online, 07/10/2009).

Mas a reação maior se deu no Congresso Nacional. A bancada ruralista recolheu assinaturas em nova tentativa de abrir a CPI para investigar o repasse de dinheiro público ao MST. Senadores da oposição e governistas criticaram no plenário a ação do MST. A senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidenta da CNA (Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária), afirmou: “Isso é mais uma ação do MST irracional e ilegal e com financiamento público que é o que mais traz indignação à população”. O presidente do STF, Gilmar Mendes, condenou a invasão da fazenda Santo Henrique e disse que “não pode haver nenhuma tolerância com quem desrespeita a lei e que o governo corte qualquer tipo de ajuda a entidades que cometem crimes”.

O MST, por outro lado, argumenta que as terras pertencem de fato à União, mas são usadas ilegalmente há dez anos pela Cutrale, uma das maiores produtoras de suco de laranja do Brasil. Em nota, o INCRA condenou a ação dos sem-terra, mas disse que reivindicou as terras em 2006 e que aguarda decisão da justiça federal. A multinacional Cutrale, por outro lado, apresentou documentos à Justiça de São Paulo em que afirma ser proprietária da área e argumenta que a terra é produtiva. Mas o MST rebateu: “A produtividade da área não pode esconder que a Cutrale grilou terras públicas”.

Coincidência ou não, em 13/10/09, a CNA apresentou resultados de uma pesquisa encomendada ao Ibope que revelou que 47,7% das propriedades de assentamentos rurais consolidados não produzem o suficiente nem para a família e que 75% dos assentados não têm Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). A presidenta da CNA, senadora Kátia Abreu (DEM/TO),voltou à carga: “Estamos criando verdadeiras favelas rurais, distantes de todas as políticas públicas, já que tudo no campo custa mais caro”. Mas tanto o INCRA quanto o MST afirmam que a amostragem foi mal feita e é insuficiente para tirar conclusões, porque as pessoas ouvidas representam apenas 0,1% das 920.861 famílias assentadas.

É evidente que a ação do MST foi infeliz e injustificável. Mas é preciso entender que o movimento dos trabalhadores sem-terra não se constitui num bloco monolítico e está sujeito a erros. É provável também que no interior do movimento existam “olheiros” sempre dispostos a colocar o MST em maus lençóis perante o governo federal e a opinião pública. Senão,como explicar a presença do helicóptero do serviço de inteligência da PM sobrevoando o local no momento exato em que o laranjal era destruído pelo trator? Sabe-se que o cinegrafista amador Flávio Jun Kitazume filmou as imagens uma semana antes de serem veiculadas no Jornal Nacional. Ele é oficial da PM em Bauru, SP, e foi afastado da cidade em 2007 porque integrava um grupo de policiais que cometiam sérios abusos contra os direitos humanos (site “Vi o mundo”, de Luiz Carlos Azenha, 08/10/09).

Outro ponto importante é saber se a área em questão é de fato da Cutrale e se é produtiva. Segundo texto recente do doutor em Geografia, Ariovaldo Umbelino de Oliveira (Brasil de Fato, 22-28 de outubro de 2009), a Cutrale possui 30 fazendas em São Paulo e Minas Gerais, totalizando 53.207 ha. Desses, seis delas de 8.011 hectares foram classificadas como improdutivas pelo INCRA, desde 2003, e das 30 fazendas relacionadas não consta a área de Iaras. Isto significa que a fazenda Santo Henrique não é de propriedade da Cutrale – é grilada!

Por fim, não se pode analisar o episódio de Iaras isolado de seu contexto. A cena do trator devastando o laranjal vai muito além de uma simples tentativa de “satanização” do MST no Brasil. Ela se encaixa em um conjunto de “sinais de fumaça” que indica uma forte guinada para a direita nos atuais cenários políticos interno, latino-americano e internacional, particularmente após o fim da crise financeira mundial. Nesse rol, se encaixam, dentre outros: o tratamento dado à questão indígena e agrária no Brasil e no MS, a direitização crescente do governo Lula-PMDB, a assunção de prefeitos e governadores ultraconservadores, o ressurgimento de figuras políticas do passado – leia-se Ronaldo Caiado e outros, o golpe de Estado em Honduras, o envio de tropas pelos EUA ao Afeganistão, a demonização dos governos de Chávez na Venezuela e de Ahmadinejad no Irã. Não é de admirar, portanto, que a Reforma Agrária no Brasil caminhe em passos tão lentos, em passos de tartaruga.

* Médico-Veterinário, escritor e acadêmico de jornalismo da UFMS.

Artigo publicado em 05 de novembro de 2009, no Correio do Estado.

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