O avestruz e a merenda escolar

24/02/2010 at 17:27 (Hermano de Melo)

Hermano de Melo*


Foi destaque recente na imprensa local: ainda neste ano letivo de 2010, o cardápio da merenda escolar de cerca de 100 mil alunos da rede municipal de ensino de Campo Grande será reforçado com carne de avestruz e de boi orgânico. A idéia é do titular da Sedesc (Secretaria Municipal do Desenvolvimento Econômico, de Ciência e Tecnologia e do Agronegócio – ufa!), e vice-prefeito da Capital, Edil Albuquerque (PMDB), que além das 15 toneladas de polpa de peixe, 33 toneladas de coxa e sobrecoxa de frango e 33 toneladas de salsicha de frango congeladas normalmente utilizadas na merenda, vai comprar 55 toneladas de carne bovina orgânica e 33 toneladas de carne de avestruz moídas e congeladas. A licitação, no valor de R$ 1,3 milhão (R$ 768 mil de carnes exóticas), para a compra desses produtos será aberta dia 25/02 e os recursos são oriundos do MEC (Ministério da Educação). (Campo Grande News,14/02/2010).

O vice-prefeito justificou assim a medida: “O boi orgânico é uma carne saudável e produzida respeitando questões ambientais, e a carne de avestruz é nutritiva, tem alto teor de ferro, baixo porcentual de gordura, além de ser macia e saborosa. Serão importantes no desenvolvimento das crianças”. Segundo ele, “as carnes exóticas já foram testadas nas escolas por três meses e a aceitação foi muito grande”. Embora o preço de referência para o quilo da carne bovina orgânica seja de R$ 8,25 (30% a mais que a carne de segunda), e o da carne de avestruz R$ 9,85, ele diz que “a municipalidade ao comprar o produto mais caro incentiva a produção orgânica, porque os 16 fazendeiros pantaneiros envolvidos no negócio não conseguem exportar os cortes de segunda. O mesmo se aplica aos produtores de avestruz”. (Correio do Estado, 13/02/2010).

Em editorial intitulado “Nutrindo investidores” (13/02/2010), porém, o “Correio do Estado” diz que, embora o argumento do vice-prefeito de que o poder público tem obrigação de incentivar a produção local faça algum sentido,“é no mínimo ilógico utilizar o dinheiro dos campo-grandenses para pagar caro por uma carne proveniente de fazendeiros do Pantanal, que além de serem de outras regiões do Estado, certamente são bem menos necessitados que 95% daqueles que pagam impostos na Capital”. E que, “absolutamente todos aqueles que se aventuraram na criação das gigantescas e desengonçadas aves o fizerem sabendo dos riscos e porque tinham algum dinheiro para investir na novidade. Então, se não obtiveram o sucesso que esperavam, não faz sentido agora utilizar dinheiro público para minimizar a decepção dos investidores”.

É preciso entender, no entanto, que mesmo considerando que há fortes indícios de jogo de interesses na compra de carnes exóticas para a merenda escolar de Campo Grande, o problema maior parece não estar relacionado ao fato de que uma delas – a do boi orgânico – ser de dianteiro e produzida no pantanal sul-mato-grossense. Afinal, embora seja considerada uma carne de “segunda linha” e proveniente de terras distantes daqui, ela advém de animais criados de forma mais saudável que a usual e portanto deve fazer bem às crianças quando adicionada ao lanche escolar. Além disso, não deixa de ser politicamente correto incentivar a produção do boi orgânico e outros itens desse tipo utilizados na alimentação humana. Ora, se esse raciocínio for correto, a questão central se resume em saber: por que cargas d’água a prefeitura local decidiu comprar carne de avestruz para compor a merenda escolar das escolas municipais da Capital?

Para responder a isso, é preciso voltar aos tempos do mestre químico francês Lavoisier (1743-1794), e traduzir sua mais famosa frase para o “brasilianês”, que ficaria assim: “Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se copia”. É que Campo Grande não é a primeira, nem provavelmente será a última cidade brasileira a adotar a carne de avestruz na merenda escolar de suas escolas municipais. Desde o início de 2009, Campinas (SP) é a primeira cidade do Brasil a utilizar esse tipo de carne no cardápio da merenda escolar dos alunos de suas 507 escolas municipais e estaduais! A iniciativa é da Secretaria de Educação de lá, em parceria com as Centrais de Abastecimento de Campinas (Ceasa) e faz parte do Programa Municipal de Alimentação Escolar (PMAE),cujo objetivo é agregar novas opções ao cardápio escolar (Agência Anhanguera,19/06/09). E o mesmo acontece em Almirante Tamandaré, PR, onde o teste de degustação realizado numa escola infantil mostrou que 75% das crianças aprovaram o sabor da carne de avestruz (Bem Paraná On-Line, 25/03/09).

Parece haver, porém, outros motivos para justificar a decisão do vice-prefeito Edil de inserir a carne de avestruz na merenda escolar da Capital. Um deles, talvez, seja resposta à forte campanha de marketing desencadeada pelas cooperativas regionais de estruticultores (criadores de avestruzes) desde o IX Congresso Brasileiro de Estrutiocultura de dezembro de 2008, em São Paulo,SP, e cujo tema central foi de estimular o consumo de carne de avestruz via merenda escolar! (ACAB,11/12/2008). O outro pode ser uma tentativa do poder público municipal em ajudar os estruticultores a desovar a produção e estoque de carne de avestruz que se encontra no campo e não encontra compradores (Diário On-Line,20/12/2009). É como diz Ester Figueiredo em sua coluna “Diálogo” no Correio do Estado de 20/02/2010, sob o título “Exóticas”: “Uma das justificativas da prefeitura para incluir na merenda dos alunos de Campo Grande as carnes orgânicas de boi e avestruz é de apoio aos produtores. Já imaginaram se os de rã, de jacaré em cativeiro e por aí afora decidem pedir auxílio, hein?”.

* Médico Veterinário, Escritor e Acadêmico de Jornalismo.

Publicado no Jornal Correio do Estado em 23 de fevereiro de 2010.

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A CONFECOM de fato

18/02/2010 at 17:37 (Autores Convidados)

Por Rafael de Abreu

As conferências são extremamente importantes para consolidação da democracia no Brasil, pois são espaços destinados às pessoas da sociedade civil e do governo debaterem temas relacionados ao desenvolvimento do país. Também, através delas é que se propõem novas políticas públicas, programas e ações governamentais ou comunitários.

Durante o Fórum Social Mundial de 2009, ocorrido na cidade de Belém/PA de 27 de janeiro a 01 de fevereiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou que convocaria a I Conferência Nacional de Comunicação (CONFECOM). Mas apenas no dia 16 de abril, com o tema “Comunicação: meios para construção de direitos e de cidadania na era digital”, o decreto foi publicado no Diário Oficial. O responsável pelo financiamento e desenvolvimento seria o Ministério das Comunicações com a participação direta da Secretaria da Presidência de Comunicação Social.

No dia 20 de abril saiu a Portaria 185, que instituiu os órgãos do poder público e as instituições da sociedade civil que fariam parte da Comissão Organizadora, que se responsabilizariam de regular todos os aspectos da conferência. A composição era a seguinte: oito representantes do Executivo Federal e dezesseis representantes da sociedade civil, divididos em sete entidades dos movimentos sociais, oito do setor privado-comercial e uma da mídia pública.

O Poder Público foi representado pela Casa Civil da Presidência da República, Ministério das Comunicações, Ciência e Tecnologia, Cultura, Educação e Justiça; Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Secretaria-Geral da Presidência da República, Senado Federal e Câmara dos Deputados.

A sociedade civil inicialmente era composta pela Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM), Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC), Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA), Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO), Associação Brasileira de Provedores Internet (ABRANET), Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Associação dos Jornais e revistas do interior do Brasil (ADJORI BRASIL), Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER), Associação Nacional de Jornais (ANJ), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), Federação Interestadual dos Trabalhadores de Empresas de Radiodifusão e Televisão (FITERT), Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Coletivo Brasil de Comunicação Social (INTERVOZES) e Associação Brasileira de Telecomunicações (TELEBRASIL).

No dia 26 de maio foi publicada a Portaria 315, que relacionou os nomes dos representantes de todas as entidades e órgãos do poder público que fariam parte da Comissão Organizadora. Três dias depois, 29 de maio, foi feita uma retificação por meio da Portaria 337, alterando a nomeação do Ministério da Justiça e indicando a deputada Luiza Erundina como titular da Câmara dos Deputados, junto com o deputado Paulo Bonhausen.

Problemas:

O anuncio e o decreto não garantiam que a conferência de fato fosse realizada. Houve muita pressão por parte do setor empresarial e demora na votação do regimento interno, o que, por conseguinte, atrasou as etapas estaduais, municipais e distritais.

A verba inicial destinada era de R$10 milhões. Nas discussões, diminuíram para R$8,2 milhões, mas havia um dinheiro complementar de R$300 mil, o que totalizaria R$ 8,5 milhões. No dia 12 de maio, houve uma redução de R$ 6 milhões.  Foi publicado no Diário Oficial da União que apenas R$ 1,6 milhões estavam assegurados. Era impossível, com a nova verba fixada, levar todos os delegados eleitos nas etapas estaduais. Depois de muita luta, os R$8,2 milhões iniciais foram mantidos pelo Ministério da Previdência, os delegados receberam passagem aérea ou terrestre, hospedagem, alimentação diária e transporte. Foram 2,1 mil pessoas, entre convidados, delegados, espectadores e funcionários.

O setor empresarial quando percebeu o avanço que a conferência traria para a comunicação brasileira, tentou boicotá-la. Para tentar tirar a legitimidade, seis entidade empresariais decidiram se retirar, alegando que algumas vontades da sociedade civil iam contra os princípios constitucionais. No dia 13 de agosto saíram a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), a Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), a Associação de Jornais e Revistas do Interior do Brasil (ADJORI BRASIL), a Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER), a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Internet (ABRANET). Em nota eles afirmaram que a decisão foi tomada para que fossem defendidos a liberdade de expressão, o direito à informação e a legalidade.

A Agência Brasil publicou um texto no mesmo dia relatando que, após a reunião o Ministro das Comunicações, Hélio Costa, disse que a saída das entidades foi muito civilizada. Segundo ele, “não é um abandono da Confecom, pelo contrário, eles estão abrindo um espaço na comissão preparatória para que ela possa chegar a uma proposta final consensual. Como eles tinham algumas dificuldades em apoiar determinados pontos na comissão, eles preferem não participar dessa última fase para que a gente complete a proposta de funcionamento da conferência e depois eles participam da conferência”. Não foi isso o que aconteceu. Após o ocorrido, as empresas ligadas as entidades começaram a fazer ataques absurdos e desqualificados em seus veículos contra a conferência.

link:http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/08/13/materia.2009-08-13.4446578738/view

Algumas informações que circularam na internet apontavam para um desconsenso entre entidades de radiodifusão, a Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA), entidade representativa da Rede Bandeirantes de Televisão e Rede TV continuou no processo. Dentro da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), entidade que representa a Rede Record e a Rede Globo de Televisão, tudo indicava para que a Rede Record queria continuar no processo, mas foi voto vencido pela Rede Globo de Televisão. Mais uma vez se mantiveram as vontades da Rede Globo.

O Regimento Interno foi publicado no Diário Oficial da União no dia 18 de agosto, como etapas preparatórias as conferências municipais, livres, virtuais, estaduais e distrital, mas apenas as estaduais e distritais elegeriam delegados para a etapa nacional. A sociedade civil foi dividida em sociedade civil e sociedade civil empresarial, nascia assim, o cárter tripartite e desproporcional da CONFECOM. A sociedade civil empresarial ficou com 40% dos delegados, o que não contemplou a realidade, pois os empresários representam menos de 1% da sociedade. Para a sociedade civil, que seriam as entidades de movimentos sociais foram estipulados outros 40% e os 20% restantes ficaram para o poder público.

O Brasil já fez mais de cem conferências, a única que ficou com essa desproporcionalidade na escolha dos delegados foi a de comunicação. O presidente da Comissão Organizadora, Marcelo Bechara, no programa da Jogo do Poder (CNT), realizado no dia 04 de novembro, justificou: “Como é a primeira conferência nacional, tudo que é novo, ele causa uma certa perplexidade, uma certa desconfiança e muitas vezes dúvidas. A sociedade civil ela já vem participando de outras conferencias e ela já vem trabalhando especificamente a realização da conferência de comunicação. Então você tinha uma bagagem, tem uma bagagem, já de algumas entidades da sociedade civil, movimentos sociais e você de repente tem ali um setor que não participou de conferencias”.


Outra questão importante para ser levantada é que a conferência não foi deliberativa, apenas consultória. Depois de muitas reuniões, brigas e debates chega o dia da etapa nacional.

A Conferência Nacional de Comunicação:

A cidade destinada para a etapa nacional foi Brasília/DF. Inicialmente marcada para 01 a 03 de dezembro, foi transferida para 14 a 17, sob a justificativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não ter agenda para a data anterior. Na abertura, o presidente fez um discurso ressaltando a importância de se discutir comunicação no Brasil e respondeu algumas indignações da plateia acerca da demora e da criminalização das rádios comunitárias.


De acordo com a organização do evento foram aprovadas 601 propostas diretamente nos Grupos de Trabalhos e 71 na plenária final, totalizando 672 propostas aprovadas. Não foram apreciadas ou aprovadas 50 propostas.

Compareceram à etapa nacional 1684 delegados representantes dos três segmentos (sociedade civil, empresarial e poder público), 350 observadores, 50 convidados especiais. As etapas estaduais foram realizadas em todas as unidades federativas do país. Dessas etapas saíram 6084 propostas que foram sistematizadas e colocadas nos cadernos distribuídos e apreciadas pelos delegados.

As principais propostas foram a criação de um Conselho Federal de Jornalismo e  um Conselho Nacional de Comunicação, a criação de uma nova Lei de Imprensa, a obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da profissão, proibição de políticos donos de emissora (o que já é ilegal) e um observatório da mídia.

link: Propostas aprovadas na Plenária final, com votação por consenso e acima de 80% nos grupos de trabalho.

Polêmicas:

O primeiro grande golpe para tirar a legitimidade durante a conferência aconteceu no dia 14 de dezembro, logo após o início do credenciamento dos delegados. A Comissão Organizadora Nacional (CON), reuniu-se de última hora para criar uma nova resolução acerca dos Grupos de Trabalhos. Com a nova resolução os GTs funcionariam com a mesma metologia da plenária, podendo ter questões “sensíveis” que necessitariam de 60% dos votos e com um voto de cada seguimento.

A resolução teve apoio do poder público, empresários, e por incrível que pareça, de algumas entidades da sociedade civil como a CUT, FNDC, FENAJ e AEPEC. Apenas Intervozes, FITERT e ABRAÇO votaram contra. A  justificativa dada pelas entidades da sociedade civil que votaram a favor foi uma possível saída dos empresários caso a resolução não fosse aprovada. Quanto às outras entidades que estavam dentro do processo de construção, mas não eram da Comissão Organizadora ficaram sabendo, houve um grande tumulto e, por isso, atraso no início da confecom.

Para muitas entidades não fazia sentido continuar na conferência, pois com essa nova resolução não sairia nenhuma proposta que quebraria a hegemonia dos grandes grupos de comunicação. Para discutir o problema e tentar superar o desgaste que o segmento sofreu foi convocada uma plenária. Durante a plenária houve muita discussão até chegar a um consenso para tentar anular a nova resolução. As entidades se reuniram na manhã do dia 15 de dezembro para tirar alguns posicionamentos e decidirem se sairiam ou não da CONFECOM caso a resolução se mantivesse.

A solução surgiu com um acordo durante a plenária que aprovou o regimento interno da conferência. A resolução seria anulada, mas as propostas prioritárias teriam que ser dividias em 04 para os empresário, 04 para sociedade civil e 02 para o poder público. Ou seja, não haveria debate dentro dos GTs, apenas novos acordos. Como consequência a sociedade civil brigou entre si para ter suas propostas prioritárias aprovadas. Embora a proposta 4-4-2 tenha sido aprovada, não houve consenso, durante todo a votação do regimento o que mais se via eram acordos e mais acordos de algumas entidades com os empresários e poder público.


*Texto em homenagem a Keyciane, Flávio e Hermano.

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Olhar à direita!

11/02/2010 at 12:47 (Hermano de Melo)

Hermano de Melo*

OLHAR À DIREITA (gravura inspirada na famosa tela do pintor francês Eugéne Delacroix "A liberdade guiando o povo". Na obra original, a "liberdade" segura, evidentemente, a flâmula francesa, símbolo da revolução. E olha para o lado esquerdo).

Desde que foi assinado pelo presidente Lula, em 21/12/2009, o decreto 7.037, que trata do 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos – o PNDH-3 – sofre de intensos bombardeios por parte de alguns setores da mídia nacional e de segmentos conservadores da sociedade brasileira. Esses ataques visam principalmente temas específicos que constam do projeto elaborado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, sob a tutela do ministro Paulo de Tarso Vannuchi, tais como, a questão agrária, o controle da mídia, militares e documentos da ditadura, religião, aborto, relação homoafetiva, dentre outros.

Logo após a divulgação do PNDH-3, porém, a pressão dos militares foi tanta que obrigou o governo Lula a alterar parte do decreto original relativa à repressão política no Brasil. Assim, em 15/01/2010, foi publicada no Diário Oficial da União uma segunda versão na qual se suprime a expressão “repressão política”, e embora se mantenha no texto a ‘Comissão Nacional da Verdade’, a nova versão retira dela a capacidade de “apuração e esclarecimento público”, como constava antes, dando-lhe apenas a atribuição de “examinar as violações dos direitos humanos” praticadas durante o regime militar (1964-1985)”. As duas versões, no entanto, afirmam que o exame das violações tem o objetivo de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”, e ambas citam entre as atividades da Comissão “o esclarecimento circunstanciado de torturas, mortes e desaparecimentos” (JusBrasil, 15/01/2010).

Mas, afinal de contas, por que o PNDH-3 provoca tanta polêmica desde o seu nascedouro, uma vez que é apenas uma espécie de “protocolo de intenções” que ainda tem de passar pelo Congresso Nacional e pelo Judiciário para eventualmente se tornar lei? A resposta mais simplista talvez seja porque o documento mexe com os interesses e com o bolso de milhões de brasileiros, em particular daqueles que se situam em camadas mais privilegiadas da população. No entanto, é possível também que a discussão e aprovação do documento tenham deixado de lado segmentos importantes da sociedade brasileira, que não tiveram oportunidade (ou não quiseram) discuti-lo nas ocasiões em que isso foi feito.

É bom que se diga que o 3º PNDH é fruto da participação de pelo menos 14 mil pessoas em todo o Brasil, de várias entidades da sociedade civil, movimentos sociais, poder público, etc.,cuja construção durou mais de dois anos até ser aprovado na XI Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em dezembro de 2008, em Brasília-DF. É importante lembrar ainda que o 3º PNDH faz parte do que se poderia chamar de uma trilogia, ou seja, é a terceira versão do programa implantado no governo FHC (1996 e 2002) e que continua agora no governo Lula (2009/2010). Estudo comparativo publicado pela Folha Online (11/01/2010) mostra as diferenças básicas existentes entre as três versões em relação aos itens aborto, homossexuais, fortunas, agronegócio, sem-terra, reforma agrária e invasões, controle da mídia, militares e documentos da ditadura, transgênicos e religião. O estudo da Folha revela que, apesar de alguns excessos contidos em alguns itens – que poderão ser sanados quando da elaboração dos projetos-de-lei pelo Executivo ou Legislativo – na maioria deles o 3º PNDH apenas dá seqüência e amplia o que vinha sendo feito no governo FHC!

Existem, no entanto, muitas vozes dissonantes em relação ao Programa e é bom que assim seja. Para o repórter José Casado (Globo, 08/01/2010), por exemplo, o 3º PNDH é “uma miríade de promessas para este ano eleitoral:da regulação de hortas comunitárias à revisão da Lei da Anistia; da taxação de grandes fortunas às mudanças nas regras dos planos de saúde; da legalização do casamento homossexual à fiscalização de pesquisas de biotecnologia e nanotecnologia”. E talvez seja esta a maior crítica que se pode fazer ao PNDH-3: Por que lançar um programa dessa magnitude faltando apenas 11 meses para o encerramento do governo Lula, em ano eleitoral e com prazo tão exíguo para sua apreciação e execução?

Mas, evidentemente, isso não pode servir de argumento para alguns articulistas locais mais exaltados que vêem no 3º PNDH uma “Práxis amoral”, “Coalizão de forças trotskistas, castristas que visam botar fogo neste País”, “O decreto trotskista de Lula”, “Programa criado pelo grupo de guerrilheiros da Casa Civil”, “Entranhas totalitárias”, e outros absurdos mais. A esses ilustres senhores (e senhora) é bom lembrar que, se realmente o Brasil estivesse diante de um governo que visa implantar um Estado totalitário, ou algo parecido, o PNDH-3 não seria publicado e divulgado como um conjunto de diretrizes de governo para ser apreciado pelo Congresso Nacional e Judiciário, e ser aprovado ou rejeitado. Ele seria empurrado goela abaixo, sem discussões, nos mesmos moldes que era feito no período da ditadura de 1964-85, de nefasta lembrança.

Nesse sentido, é importante a leitura do artigo da jurista, professora de direitos humanos, procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Flavia Piovesan, publicado no Estadão.com.br., de 17/01 passado, quando ela diz, dentre muitas outras coisas importantes: “Se na época dos regimes ditatoriais, a agenda dos direitos humanos era contra o Estado, com a democratização os direitos humanos passam a ser também uma agenda do Estado – que combina a feição híbrida de agente promotor de direitos humanos e, por vezes, agente violador de direitos”. Daí a importância do PNDH-3.

* Escritor e acadêmico de jornalismo.

** Publicado no jornal Correio do Estado de 11/02/2010.

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Algemas – cadê?

07/02/2010 at 22:30 (Keyciane Pedrosa)

Fiquei em dúvida em que título dar a esse post. Surgiu-me dar-lhe o nome “Jogo dos 7 erros”. Mas, pensando bem, são bem mais de 7. São milhões de coisas erradas que acontecem nesse país diariamente, ao que a gente assiste imóvel, perplexo, besta, bunda-mole. Pensei também em chamar-lhe “Duas fotos e uma lenda: a justiça no Brasil”. Porque, realmente, se existe justiça por essas paragens, francamente, não me apresentaram. Mas também não gostei deste. Pensei em uma outra leva de nomes-clichê (nem tanto quanto o que ficou ali em cima) que já me fugiram da cabeça. Mas já não importa. Foram-se as idéias, ficou a perplexidade. E  se as imagens falam por mil palavras. Lá vão milhares de perversidades.

Vejamos essas duas fotos:

Prisão de BANQUEIRO acusado, entre outras coisas, de formação de quadrilha, em julho de 2008. Foto de Wilton Junior, da Agência Estado (Disponível em Galeria de Imagens da Operação Satiagraha, no site do Estadão).

A algema que nem se vê na foto da prisão do banqueiro, envolvido em escândalos históricos nos governos FHC e Lula, foi motivo de muito ba-fa-fá há época. Tudo por causa de uma tal súmula vinculante do STF (lei Dantas, para os íntimos) que limita o uso de algemas. Curiosamente, até agora nem um terço do alvoroço das algemas de 2 anos atrás foi manifesto pelas autoridades, operadores do Direito, ou pela mídia deste país (a exceção a essa e quase todas as outras regras está na Internet) em relação a essas algemas aqui:

Prisão de MILITANTE do MST acusado, entre outras coisas, de formação de quadrilha, em janeiro de 2010. Foto de Luis Cardoso da Agência Bom dia. (Reproduzido do Estadão pelo blog do Paulo Henrique Amorim).

Bem, isso sim é uma algema “espetaculosa”. A prisão, uma entre mais de 20 de militantes autorizadas pela justiça só no mês de janeiro, é decorrente da ocupação da Fazenda (grilada) da Cutrale, no interior do estado de São Paulo, e sua famigerada destruição de pés de laranja.

Perceberam o contraste? É ou não é para ficar sem palavras? É óbvio que os contextos são diferentes, os crimes também, as polícias, as épocas (ano eleitoral é dose!), e o mais óbvio de tudo: as justiças são completamente diferentes. Não há muito mais que eu consiga manifestar, além de uma enorme tristeza e aquela eterna pontinha de esperança expressa na prece diária de “Meus Deus, socorro!!!”.

***

Para quem não se lembra ou quer refrescar a memória em relação aos contextos originários das duas fotos, recomendo a leitura dos artigos do Hermano “Colarinho Branco” e “O trator e o laranjal“.

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Casamento silencioso

03/02/2010 at 12:08 (Hermano de Melo)

Hermano de Melo*

Trailer de "Casamento Silencioso", videocast da Folha

Exceto em ocasiões muito especiais, o silêncio no casamento é indicativo de que a relação não anda bem ou que foi definitivamente pros quiabos. Mas este não é de fato o mote central da comédia-drama romena dirigida por Horatiu Malaele,“Casamento silencioso” (2008), exibida no Cinecultura, durante o 7º Festival de Cinema de Campo Grande, MS – o Festcine Pantanal. No filme em apreço, o silêncio é imposto a uma festa em comemoração ao casamento de dois jovens num pequeno vilarejo no interior da Romênia, em 1953, durante a ocupação soviética e no governo do ditador Nicolae Ceausescu. A justificativa para isso é a morte na véspera do líder comunista russo Josef Stalin.

O filme se inicia, nos dias atuais, com uma equipe de TV que investiga fenômenos paranormais e que descobre um fato inusitado: numa determinada aldeia no interior da Romênia, onde ainda se vê esqueletos de fábricas deixados pelos soviéticos durante a ocupação do País, todos os habitantes são mulheres velhas enlutadas – não há homens, exceto o prefeito! A partir daí, o diretor faz um longo flashback aos tempos da ocupação russa em territórios romenos, a fim de revelar o porquê da não existência de homens no local.

Tudo começa com a paixão avassaladora entre dois jovens, Mara e Iancu, que depois de realizarem inúmeras estrepolias sexuais na floresta que circunda a vila romena, são ‘gentilmente’ convencidos pelo pai da noiva (assim como se fazia até pouco tempo por aqui) a se casar. E marcam então a data do casamento, quando haveria então uma grande festa para comemorar o evento. Mas eles não contavam com o inesperado: na noite anterior à data planejada para a festança, morre na União Soviética o líder comunista Josef Stalin e o governo romeno decreta então sete dias de luto oficial, proibindo todo e qualquer tipo de manifestação festiva, inclusive a do casamento entre os jovens.

Assim, no dia em que os camponeses comemoram nas ruas o casamento de seus filhos,chega à aldeia um emissário do governo Ceausescu, acompanhado de um oficial russo e do prefeito do lugar. E o diálogo que se segue é o que se pode chamar de cômico-trágico. O oficial romeno repete o que o camarada russo diz: “Nada de risadas, nada de casamentos, nada de funerais”. E o prefeito retruca: “Como nada de funerais? O camarada Stalin não vai ter um funeral?” E como resposta recebe um tremendo soco na cara do emissário do governo romeno. E tudo então é recolhido – mesas, comidas, enfeites, etc. – e a festa aparentemente acaba.

Os moradores, porém, ainda acreditam que podem enganar o governo Ceausescu e decidem então fazer a festa de casamento na calada da noite e de forma silenciosa. No intuito de não deixar transparecer que ali acontece uma animada festa de casamento, com a presença de autoridades locais, pais dos noivos, moradores, crianças e dos noivos, tudo – diálogos e discursos, tilintar de copos e talheres, banda de música, etc. – é feito de forma simulada e sem qualquer ruído. Até as bocas das crianças são tapadas com pedaços de pano para evitar risadas e o cuco do relógio de parede é ‘nocauteado’ quando insiste em anunciar a hora!

Mas aí então começa a cair um forte temporal, com raios e trovões, e o pai da noiva resolve liberar geral: os músicos para tocarem seus instrumentos, a dança, o falatório e a barulheira retornam a todo vapor ao recinto da festa. O resultado não poderia ser mais desastroso. De repente, um tanque russo vindo ninguém sabe de onde, rompe literalmente a parede do salão de festas e acaba com a comemoração de casamento com o uso da violência. Em seguida, todos os homens da cidade presentes ao evento, exceto o prefeito, são colocados na carroceria de um caminhão do exército e enviados para local não sabido e de onde jamais retornariam. E assim apenas as mulheres ficam no vilarejo romeno.

Descontados os clichês, o filme de Horatiu Malaele, “Casamento silencioso”, mostra de forma jocosa a reação da população local à invasão soviética da Romênia em 1953, e a platéia tem bons motivos para dar risadas durante sua exibição. No entanto, fica claro também que apesar das brincadeiras, a película denuncia de forma contundente o autoritarismo e a violência que ocorrem durante a invasão de um país por tropas militares estrangeiras, quer o invasor esteja à direita ou à esquerda do espectro político, ou o país invadido seja a Romênia em 53, o Vietnam na década de 60, ou o Iraque e o Afeganistão nos dias atuais!

Além disso, é possível inferir do filme de Malaele que, numa ditadura – tanto a vigente na Romênia em 1953 quanto a que aconteceu no Brasil em 1964, e outras que ocorreram em países sul-americanos na década de 70, além do golpe militar em Honduras (2009) – não se deve colocar num mesmo patamar de culpa, golpistas e golpeados, torturadores e torturados, exército e povo reprimido, mesmo quando estes últimos se utilizam de armas para lutar pelo país e restabelecer a ordem democrática! Nesse sentido, a Lei de Anistia brasileira, assinada em plena vigência da ditadura militar (1979), precisa ser melhor analisada. Esta talvez seja a maior contribuição que o filme dá aos que vêem nele algo mais do que uma simples cerimônia festiva de casamento matuto.

* Professor, escritor e estudante de jornalismo

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