Pastores e fuzis

25/03/2010 at 13:05 (Hermano de Melo)

Hermano de Melo*

Notícia recente veiculada pela mídia local e nacional causou forte impacto entre os brasileiros em geral e sul-mato-grossenses em particular. Em 10 de março último, dois pastores da Igreja Mundial do Poder de Deus foram presos em operação rotineira da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na BR-262, em Miranda,MS, a cerca de 200 km de Campo Grande, por transportarem sete fuzis M-15 calibre 5.56 de fabricação americana, em um carro com placa de Três Lagoas. Eles iriam se reunir com um terceiro pastor em Campo Grande (que também foi preso depois), para então levar as armas a traficantes do Morro do Martins, em São Gonçalo (RJ). Pelo transporte, o grupo receberia R$ 20mil (Campo Grande News e TV Morena/Globo (11/03/2010); Correio do Estado (12/03/2010).

Os pastores disseram aos policiais que voltavam de Corumbá onde tinham promovido cultos religiosos, mas como eles estavam muito nervosos a polícia desconfiou e resolveu fazer uma revista minuciosa. Os fuzis desmontados e envolvidos em material adesivo plástico foram encontrados escondidos em fundos falsos nas portas dianteiras e traseiras e no assento de trás do veículo. Com os pastores foram apreendidos também R$ 2,5 mil que teriam sido entregues pelo fornecedor das armas na Bolívia, para pagamento de despesas de viagem, e R$ 4 mil que alegaram ter arrecadado dos fiéis em Corumbá e Ladário. Os três foram indiciados pelo crime de tráfico internacional de armas e junto com o material apreendido presos na Superintendência da Polícia Federal de Campo Grande. Dois deles são ministros religiosos da Igreja Mundial “A mão de Deus está aqui”, no bairro Vila Nova, de Três Lagoas.

Para a Aliança Evangélica Brasileira de Mato Grosso do Sul (AEVB-MS), a prisão dos três pastores demonstra o despreparo de alguns líderes religiosos que acabam não se tornando exemplos de pessoas. De acordo com o pastor Ronaldo Leite Batista, presidente da Aliança, líderes evangélicos, principalmente, devem se pautar “pela lei, pela ordem e orar pela moralidade”. Segundo ele, a Igreja Mundial do Poder de Deus não é associada à Aliança Evangélica, e apesar de defender a liberdade religiosa diz que “é preciso que os líderes tenham preparo teológico e não apenas se denominem pastores” (Correio do Estado, 12/03/2010). Por outro lado, o Apóstolo e líder da Igreja Mundial, Valdemiro Santiago, disse em programa de TV que os traficantes presos no MS não são pastores de sua Igreja, mas se forem devem ser condenados e mandou um duro recado à TV Globo (O Galileo,15/03/2010).

No blog “Púlpito Cristão”, Leonardo Gonçalves (12/03/2010) compara o episódio sul-mato-grossense a outro veiculado no “Estadão”, em 2003. Naquele caso,o bispo evangélico Waldemiro Santiago de Oliveira, de 39 anos, da Igreja mundial, foi preso durante uma blitz em Sorocaba, por levar no porta-malas do carro uma escopeta, duas carabinas e farta munição. Outras duas armas e mais munição foram apreendidas em vistoria à casa do bispo, mas ele alegou que as armas eram de caça e estavam sendo levadas para um amigo, numa fazenda próxima. Os policiais deram voz de prisão ao bispo, indiciado em flagrante por porte ilegal e, em razão das características das armas, sem direito à fiança. Ele poderia responder também por crime ambiental, se ficasse comprovado que usava as armas para caçar, como declarou aos policiais. Mas beneficiado por um alvará de soltura, o bispo foi posto em liberdade logo em seguida e continua assim até hoje!

Mesmo descontando, em parte, o caráter sensacionalista da notícia, e o fato de que não se pode julgar o conjunto de uma Igreja pelo comportamento de alguns de seus membros, o evento sul-mato-grossense é preocupante por duas razões principais. A primeira se refere ao velho ditado que diz “onde passa um boi, passa uma boiada”, que poderia se aplicar ao caso. Ou seja, se for verdade que para cada veículo apreendido por tráfico de drogas, armas e/ou mercadorias contrabandeadas nas estradas brasileiras, pelo menos outros três passam incólumes pelas barreiras policiais, é bem possível que os fuzis apreendidos pela PRF em Miranda, MS, representem apenas a ponta do iceberg de todo armamento de grosso calibre que passa por ali todos os dias em direção às favelas do Rio de Janeiro! Daí a necessidade talvez de maior vigilância! A segunda razão é de cunho puramente religioso: como se pode admitir e aceitar que pastores – neste caso, da Igreja Mundial – que em princípio deveriam se preocupar em salvar ‘almas’, se prestem à tarefa de traficar ‘armas’ (e que armas, hein?), que serão utilizadas provavelmente para matar outros seres humanos – e por vinte mil reais!

Em última análise, o episódio de Miranda, MS, representa muito mais que um simples achado de fuzis de grosso calibre no carro de pastores da Igreja Mundial. Ele revela, de forma inequívoca, o estado de barbárie capitalista e promiscuidade a que chegou uma parcela significativa da sociedade brasileira nos dias atuais, particularmente aquela que sobrevive nas periferias e morros dos grandes centros urbanos. É como diz a coluna “Diálogo” (Correio do Estado,19/03/2010), sob o título “Sinais…”, ao se referir aos pastores presos e ao padre que no teste do bafômetro deu teor alcoólico acima do que a lei permite: “Se a situação está nesse nível, imagine em meio aos ‘pobres mortais’. Pelo jeito,o fim dos tempos está chegando mais rápido do que se imagina”. Alguém duvida?

* Escritor e estudante de jornalismo.

Artigo publicado no jornal Correio do Estado em 25 de março de 2010.

Link permanente Deixe um comentário

Tamanho não é documento!

10/03/2010 at 07:10 (Hermano de Melo)

Hermano de Melo*

Quadro “Detetive Virtual” do Fantástico com o “mistério” do boi gigante (a partir do 2:08 minutos)

Conforme amplamente divulgado pela mídia estrangeira e nacional, cientistas italianos querem criar uma raça bovina semelhante ao Auroque, um boi primitivo que media dois metros de altura, pesava uma tonelada e tinha chifres de 1,40m de comprimento! Essa espécie de boi gigante, o Bos primigenius, também conhecido como Uro, surgiu no norte da Índia há dois milhões de anos, e foi declarada extinta em 1627, quando a última fêmea morreu nas florestas da Polônia. A justificativa para a execução da pesquisa é que os italianos acreditam que por ser muito resistente às condições adversas, como frio, calor e pouca oferta de alimento, o Auroque pode ser muito útil para a humanidade em tempos de aquecimento global. (BBCBrasil/FolhaOnline,01/02/10).

Para “ressuscitar” o boi gigante, os cientistas do Consórcio para Experimentação, Divulgação e Aplicação de biotecnologia Inovadora de Benevento, no Sul da Itália, cruzaram inicialmente três raças de bois com DNA similares ao do Auroque: a italiana Maremmano Primitivo, a escocesa Scottish Highland e a espanhola Pajuna. O nascimento do primeiro exemplar desse cruzamento deve ocorrer agora em fevereiro, na Holanda. O diretor do Consórcio que encabeça o projeto, Donato Matassino, explicou: “Vamos reconstituir, passo a passo, a combinação genética do boi primitivo. Esse é um primeiro cruzamento de uma série. O animal recém-nascido vai nos dar material para usar em futuros cruzamentos”. E completou: “Vai levar alguns anos para se chegar ao animal mais próximo do boi ancestral” (BBC Brasil, 01/02/10).

É evidente que a pesquisa levada a cabo pelos cientistas italianos é importante, principalmente no seu aspecto histórico/cultural/arqueológico.Afinal, fósseis encontrados na Itália, por exemplo, revelaram a presença do Auroque no continente no período neolítico, ou seja, entre 7 e 4 mil anos a.C, e a passagem do animal pela Europa está registrada em pinturas rupestres, nas cavernas de Lascaux na França e de Altamira na Espanha. Conta-se, inclusive, que em sua narrativa das guerras gaélicas, o líder romano Júlio César descreveu o boi primitivo como “um pouco menor que um elefante, mas de cor, aparência e formato de um touro”, e “sua força e velocidade são extraordinárias”. E até os nazistas tentaram ressuscitar o Auroque, por acreditarem que por causa de sua resistência poderiam utilizá-lo para habitar os territórios conquistados no leste europeu. Outra justificativa para a execução da pesquisa, segundo os autores, é que embora existam hoje raças bovinas de criação intensiva que produzem mais leite e carne do que o Auroque, elas exigem pastagens e cuidados muito mais complexos do que os do boi troglodita! (Globo.com, 01/02/10).

Mas apesar de reconhecer a importância de “ressuscitar” o boi primitivo, por ele ser um animal rústico, pouco exigente na alimentação e resistente às intempéries do clima, não se pode, a priori, preconizar o seu retorno ao mundo pecuário atual, sem saber dos motivos que o levaram à extinção há cerca de 400 anos! Se conforme a teoria da evolução e seleção natural (Charles Darwin/Wallace,1859), indivíduos melhor adaptados ao meio têm maiores chances de sobreviver, é muito provável que o Auroque, a exemplo dos dinossauros, mamutes, e outras espécies animais extintas no passado, devido ao seu tamanho avantajado, foi presa fácil de predadores da época (inclusive do homem!), o que contribuiu para o seu desaparecimento da face da Terra.

Isto significa que a despeito de sua aparente rusticidade e baixa exigência nutricional, é bem provável que, devido à sua conformação corpórea exagerada (altura, peso, tamanho de chifres, etc.), o produto que os cientistas italianos pretendem obter ao final da pesquisa – o boi gigante – talvez não seja o padrão desejável de bovino para a pecuária de carne ou de leite dos dias atuais, e nem da próxima década. Na verdade, o que se procura obter hoje, tanto para corte como para leite, são animais relativamente pequenos, compactos, de alta conversão alimentar, pesados sim, mas não gigantes nem chifrudos! Ilustrativo nesse sentido foi a tentativa de proprietários dos touros gigantes ingleses “Chilli” e “The Marshall Field” de inseri-los no livro dos recordes “Guiness”,como os maiores bois do mundo em 2008 e 2009, respectivamente. Ocorre que o “Guiness Book”, para não encorajar a superalimentação de animais, não registra o maior boi do mundo desde 1910, quando foi eleito o boi “Old Ben”, que morreu em Kokomo, no Estado Americano de Indiana pesando 2,1t e medindo 1,95m de altura! (revistagloborural.com.br., 03/12/2008;Redação Terra, 27/12/2009).

Por fim, quanto à afirmativa de que a recriação do Auroque pode ser útil para a humanidade em tempos de aquecimento global, ela é, no mínimo, polêmica. Na verdade, o que pode ocorrer é justamente o contrário: por se tratar de um “boi gigante”, tanto o consumo quanto o dispêndio de energia dele devem ser maiores que os dos “bois normais”, o que agravaria ainda mais o aquecimento do Planeta! Em resumo, a grande lição que se pode tirar do estudo dos pesquisadores italianos, talvez seja o que diz um trecho da letra da música de Lamartine Babo (1939), com Eduardo Dusek: “Tamanho não é documento,eu digo sem constrangimento, eu sou pequeno por fora, mas grande por dentro”. Ou, como diria a vovó: “Nos pequenos frascos é que se encontram as melhores essências!”.

* Hermano de Melo, Médico-Veterinário, pesquisador e estudante de jornalismo

Artigo publicado no dia 9 de março de 2010 no jornal Correio do Estado.

Link permanente Deixe um comentário