Genocídio Surreal

30/11/2010 at 09:34 (Hermano de Melo)

Hermano de Melo*

Em edição especial de outubro/2010 dedicada à questão indígena, e com manchete de capa “Genocídio e resistência dos índios do Brasil”, a revista “Caros Amigos” traz uma matéria assinada pelos repórteres Joana Moncau e Spensy Pimentel, denominada “O genocídio surreal dos Guarani-Kaiowá”, em que contam a luta do maior grupo indígena brasileiro para escapar do extermínio em Mato Grosso do Sul. E escrevem:“Imagine um lugar onde as pessoas têm expectativa de vida inferior à de países africanos em guerra, onde a taxa de assassinatos é semelhante a dos bairros mais violentos de metrópoles como São Paulo e Rio, e onde as taxas de suicídio estão entre as maiores do mundo. Imagine uma situação de racismo tal que você não pode frequentar um hospital, delegacia ou escola, nem ouvir a rádio, assistir às TVs ou ler os jornais sem ser humilhado cotidianamente. Imagine mais:é a terra onde você nasceu, mas que lhe foi retirada à força por pessoas que se instalaram ali com o apoio do governo do seu próprio país, obrigando-o a se refugiar no país vizinho para sobreviver. E, se não bastasse tudo isso, quando você tentou voltar para recuperar o que era seu por direito, foi tachado de estrangeiro. Esse lugar surreal fica no Brasil, no sul de Mato Grosso do Sul”.

Na verdade, esse extermínio lento e progressivo do povo Guarani-Kaiowá em um dos estados mais ricos da federação brasileira, não é de hoje, nem tampouco desconhecido (ver artigo escrito por este mesmo autor no Correio do Estado de 28/01/2004, intitulado “Genocídio à brasileira”). Mas em fevereiro deste ano, a senadora Marina Silva enviou uma longa carta ao Presidente Lula, em que denunciava “o grau extremo da crise humanitária em que agoniza o povo Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul”. Ela faz uma retrospectiva da saga Guarani, desde a chegada dos portugueses, em 1500, sua submissão à catequese e às chamadas “reduções”, na segunda metade do século XVII, de serem massacrados, dispersos e/ou subjugados 100 anos depois na Guerra das Missões, e sob recrutamento forçado terem pago a conta alheia na Guerra do Paraguai (1864-1870),com muitos mortos e feridos; e, por fim, a invasão de suas terras com assentimento e apoio do mesmo Estado que os recrutara. Hoje, calcula-se que haja em território sul-mato-grossense uma população de cerca de 67 mil índios que vivem em 1,7% do território sul-mato-grossense, dentre os quais, 31 mil são Guarani-Kaiowá, que ocupam áreas fragmentados e conflituosas no cone sul de Mato Grosso do Sul.

E é justamente aí que está o maior imbróglio da questão da demarcação das terras indígenas nessa região.  É que além do preconceito e até mesmo do ódio que alguns proprietários de terras nutrem pelos índios (como, aliás,os portugueses nutriam ao chegarem aqui em 1500!), grande parte dessas terras, originalmente guaranis, são hoje ocupadas por fazendeiros, ou descendentes destes, que vieram do sul do país no início do século passado, particularmente do Rio Grande do Sul, trazidos pelo então presidente Getúlio Vargas para iniciar o processo de colonização na região. Em função disso, é muito provável que alguns desses fazendeiros que relutam em sair de suas terras em benefício dos povos indígenas, sejam legítimos proprietários das terras onde vivem e possuam os chamados títulos de “boa fé”. Assim, nada mais justo que eles recebam indenização do Estado pela chamada “terra nua” e não apenas por benfeitorias feitas na propriedade ao longo do tempo, como declarou o presidente da Funai, Marcio Meira, em recente entrevista à mesma revista “Caros Amigos”.

Também em entrevista recente ao “Estadão” (03/10/2010), o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, garantiu que “o Brasil já demarcou mais de 95% das terras previstas na Constituição de 1988, e que restam menos de 5% de áreas pendentes para o País saldar uma dívida de cinco séculos com os povos tradicionais”. (É bom lembrar ao ministro, no entanto, que essa mesma Constituição de 88 deu prazo de cinco anos, após a sua promulgação, para que todas as terras indígenas fossem demarcadas no Brasil. E já se passaram 17 anos sem que isso tenha ocorrido!). Sobre se há no horizonte alguma demarcação relevante a ser feita, ele respondeu:“Temos uma determinação do presidente Lula para dar especial atenção aos índios guaranis, no Mato Grosso do Sul. Vamos partir para um programa de aquisição de terras, de formação de reserva indígena não necessariamente à base de demarcação de um território nacional”. Ao ser perguntado como isso será possível, o ministro respondeu:“Seria importante aprovar a emenda constitucional (PEC No.3/04), que tramita no Congresso Nacional, para resolver legalmente a situação.Isso vai permitir indenizar a terra integralmente (terra nua) e não só as benfeitorias nela realizadas”. E completou: “Na região Sul, muita gente tem o título de propriedade, outorgado na época da colonização, dado pelo Estado. Essas pessoas têm um título de boa fé”.

Sendo assim, é de se esperar que a demarcação total das terras indígenas no estado de Mato Grosso do Sul ainda demore um pouco a acontecer, inclusive devido à provável mudança na chefia do ministério da Justiça e da presidência da Funai no próximo governo Dilma Rousseff. O importante, porém, é que não haja solução de continuidade no processo de demarcação do território Guarani-Kiowá – e outras terras indígenas espalhados pelo Brasil afora – a fim de garantir tanto a sobrevivência quanto a sustentabilidade desse importante grupo indígena brasileiro, e da volta da tranquilidade ao meio rural. Nesse sentido, a Vice-Procuradora da República, Deborah Duprat, foi enfática ao dizer, por ocasião da abertura do Encontro Nacional da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF),que aconteceu em Campo Grande, MS (de 22 a 26/11/2010): “Vivemos um momento de energia positiva. Estamos próximos de resolver o problema de terras indígenas em Mato Grosso do Sul”. Será?

* Professor, Escritor e Acadêmico de Jornalismo.

Publicado no jornal Correio do Estado, em 30/11/2010.

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O banho da Dilma

11/11/2010 at 22:22 (Hermano de Melo)

Hermano de Melo*

Após uma longa, estressante e vitoriosa campanha eleitoral, e antes de seguir para Seul, na Coréia do Sul, onde participa junto com o presidente Lula da reunião do G-20 (grupo das 20 economias mais industrializadas do mundo), nos dias 11 e 12 de novembro, a presidenta eleita do Brasil, Dilma Roussef, resolveu descansar no final de semana e tomar banho de mar no litoral baiano.Para isso, ela escolheu um lugar paradisíaco: a Praia do Patizeiro, a 18km de Itacaré/BA, ao norte de Ilhéus, onde ficou hospedada na mansão do empresário paulista João Paiva,localizada no alto de um mirante cercado por mata atlântica. A propriedade fica ao lado de uma área de proteção ambiental nas proximidades de um resort que aparece em 41º lugar dentre outros 53 lugares imperdíveis para se visitar no mundo, numa lista elaborada em janeiro de 2008 pelo jornal “New York Times”.

Mas se ela julgava que estaria sozinha no éden baiano,enganou-se. Repórteres da Folha de São Paulo (os do Estadão chegaram atrasados!) flagraram à longa distancia, na última sexta-feira,dia 05/11/2010, a presidenta eleita tomando banho de mar vestindo maiô escuro, acompanhada de dois assessores e um agente da Polícia Federal. O grupo estava em dois quadriciclos vermelhos e se deslocava pela orla. De acordo com a matéria, Dilma ficou 15 minutos no mar e depois caminhou por mais 15. Ela saiu da água enrolada numa canga azul e depois vestiu uma saída de banho cor de rosa. Antes de ir embora no quadriciclo, ela descansou embaixo de um toldo azul, que abrigava também uma caixa térmica com frutas, biscoitos, cereais e água de coco. No dia seguinte, ao verificar que seu esconderijo havia sido descoberto, Dilma desistiu de ir à praia.

O fato é que alguns interpretaram essa fuga de Dilma Rousseff para o litoral baiano como uma espécie de homenagem ao “povo nordestino”, que lhe deu mais de 70% dos votos nas urnas, e foi um dos principais responsáveis pela sua vitória em 31/10/2010, além da influência do presidente Lula. Embora isso seja em parte verdadeiro, é bom lembrar que, à exceção de redutos conservadores pró-Serra, como os estados de Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Dilma ganhou também por uma margem expressiva de votos em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, além de ter sido muito bem votada no Rio Grande do Sul e em outros estados da Federação. Sendo assim, não há porque se falar em uma presidenta eleita “nordestina”. O mais provável é que a decisão de Dilma de se refugiar numa praia quase desconhecida do litoral baiano, tenha a ver com a sua real necessidade de se afastar física e mentalmente do burburinho palaciano, aliada ao próprio simbolismo de descanso, descarrego, limpeza e cura do banho de mar.

Nesse sentido, o sitio Magia Zen trata justamente dos benefícios estéticos e medicinais do banho de mar (Talassoterapia), e diz que muito antes de Cristo o uso do banho de mar para cura era sistemático na China e em outros lugares do mundo. Ainda segundo o sítio, Hipócrates incentivou os curadores a fazer uso da água salgada para curar várias doenças, imergindo seus pacientes em água do mar. Além disso, o banho de sal tem muitos efeitos sobre os músculos e o sistema nervoso, e age para combater o estresse e aliviar tensões. No banho de mar,o sulfato de magnésio é absorvido através da pele e tem ação antiinflamatória. Outro importante efeito do banho de mar é o de eliminar a energia negativa que se acumula no corpo no dia-a-dia. No caso de Dilma Roussef, é provável que o banho de mar em Itacaré tenha sido duplamente importante: tanto na cura física – no caso da torção no tornozelo – quanto na espiritual, ao combater o estresse acumulado nos últimos dias, e prepará-la,enfim, para os novos embates que surgirão pela frente.

Esses óbices têm a ver, por exemplo, com a matéria recentemente publicada pela revista britânica “Economist”, sobre os desafios que a presidenta eleita Dilma Rousseff enfrentará para provar que tem ideias próprias e que sairá da sombra de Lula. “Ela terá que convencer os céticos de que não é apenas o Lula de Batom”, diz a publicação. Ainda segundo a revista, até o momento ela vem lidando bem com a situação, mas criará um precedente ruim para o Brasil se permitir que Lula permaneça no poder, nos bastidores. Entre os obstáculos citados está a desconfiança de investidores,como ocorreu logo após a eleição de Lula, em 2002. Do mesmo jeito que se preocupavam em ter no poder um ex-líder socialista, eles podem ver com temor o passado de Dilma, que lutou contra a ditadura nos anos 60. E acrescenta: Para confortar os eleitores mais ricos que votaram em José Serra, no dia seguinte às eleições, Dilma descreveu seus planos econômicos como “nada que crie ondas e confusões”. (BBC Brasil, 05/11/2010).

Mas a exemplo do que ocorreu tempos atrás no Chile, com Michelle Bachelet, e atualmente na Argentina, com Christina Kirchner, a expressiva vitória de Dilma Rousseff no Brasil, além de ter um forte significado histórico, representa o reconhecimento da capacidade das mulheres em liderar os mais diversos setores do conhecimento humano, inclusive no campo político. Daí a importância, ainda que surpreendente, da manchete de capa e do conteúdo da edição especial da revista “Veja”, quando se refere à vitória de Dilma como “Uma vitória de todos os brasileiros”.Como diz, porém, Uraniano Mota no “Direto da Redação” (03/11/2010): “Só elogios para Dilma Rousseff. Incrível. Se Machado de Assis fosse visto comendo cuscuz em Água Fria (um bairro de Recife,PE),seria mais crível”. E conclui: “Essa Veja não é a Veja”.

Ao escolher, portanto, a Praia do Patizeira, em Itacaré/BA, para tomar banho de mar e descansar da refrega eleitoral, é bem provável que, sem querer, a presidente eleita Dilma Rousseff tenha desencadeado dois fenômenos inevitáveis por lá: primeiro, Itacaré nunca mais será a mesma e o fluxo de turistas deve aumentar substancialmente nos próximos meses; segundo, a venda de quadriciclos deve triplicar em todo Brasil!

*Professor, escritor e acadêmico de jornalismo.

Artigo publicado em 11/11/2010 no jornal Correio do Estado.

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