Polícia: “saída não é desmontar as UPPs”

11/03/2014 at 12:51 (*Liberdade e Diversidade)

6 de março de 2014

Por Dário de Negreiros, no Viomundo   / Outras Mídias

 UPPs

 Luiz Eduardo Soares afirma: nova visão de segurança pública só tem sentido se for parte de política de direitos nas periferias; mas rechaçá-la por completo é retrocesso

Esta é a segunda parte da entrevista. Leia também:

Polícia: da brutalidade às alternativas [parte 1]
Principal crítico das políticas de Segurança Pública descreve em detalhes sua proposta de desmilitarização das PMs. E debate UPPs, criminalização dos pobres e desaparecimentos

Polícia: a sinistra máquina da morte [parte 3]
Na terceira parte da entrevista sobre Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares debate “desaparecimentos” e execuções extrajudiciais. Para ele, também trabalhadores policiais são vítimas da militarização

Em algumas comunidades, já se escutam gritos de “Fora UPP”. Alguns movimentos sociais já têm essa expressão como palavra de ordem. Nós podemos, ao seu ver, colocar as coisas nesses termos?

Eu sou inteiramente contrário a isso, mas eu respeito estes movimentos. Toda a mídia faz apenas um mantra positivo, então posições mais sectárias na direção contrária também cumprem um papel importante.

Mas eu acho que está errado e simplesmente perguntaria ao companheiro que defendesse isso: qual é a proposta? O “Fora UPP” não é suficiente. Se dissermos “Fora essa UPP”, fora essa política, tal como está sendo conduzida, e isso associado a um conjunto de exigências: perfeito, eu endosso.

Um bom exemplo da posição que eu considero a mais consequente é, por exemplo, a dos grupos da favela da Maré. Eles pactuaram uma posição tão forte que acabou sendo reconhecida como absolutamente legítima pela sociedade e pelas polícias, inclusive. E acabaram adiando o projeto de intervenção na Maré.

Porque o pessoal da Maré distribuiu uma cartilha sobre direitos, com o que o policial pode e o que não pode. Exigiu do comando da polícia a apresentação de um plano, exigiu que aquilo fosse debatido. Queria saber do governo o que mais aconteceria, em que condições isso se faria.

Exigiram a presença da Defensoria Pública, do Ministério Público, dos defensores de direitos humanos. E isso foi tão forte, e tão evidentemente necessário, que teve o poder de adiar a decisão original do governo. O mero “Fora UPP” me parece um eco reativo à posição conservadora.

O que a esquerda nunca logrou enfrentar é a seguinte questão: como abordar o problema de um grupo armado que, em nome de interesses capitalistas – ainda que a organização seja proto-capitalista –, se imponha pela arma para vender drogas no varejo, atuando sobre a sua casa e, eventualmente, sobre a sua vida.

Isso é inaceitável, a massa da população não tolera isso. Isso é contrário aos direitos humanos, a quaisquer perspectivas universalistas. Como é que nós nos situamos diante disso? Nós achamos que isso é tolerável só porque são capitalistas mais primitivos, porque operam uma economia mais associada à marginalidade e porque as pessoas têm certas trajetórias sociais que nós compreendemos?

Então nós somos cúmplices, por inércia, deste tipo de tirania? Se isso está errado, se isso produz violações aos direitos populares, como é que nós agimos face a esse desafio e como é que nós evitamos que isso se reproduza?

Por outro lado, é claro que nós não podemos defender uma intervenção que aparentemente resolva esse problema criando outros análogos, ainda que de outro tipo. Por isso é muito importante o comprometimento dos movimentos sociais com propostas alternativas.

Por exemplo: há pessoas que defendem uma posição mais sectária para preservar o status quo e beneficiar os seus pares. Dentro da polícia, eu conheço alguns personagens que são contrários às mudanças, que estão ligados ao status quo, que querem a conservação do poder e, ao mesmo tempo, criticam o reformismo, o gradualismo, sustentando que apenas uma revolução poderia de fato alterar a natureza dessas instituições.

Bom, diante dessa postura, todos voltamos para casa impotentes para mais uma noite de sono. E, no dia seguinte, o que está vigente? O status quo. E os oponentes do status quo estão desmobilizados, porque estão à espera da redenção. E os outros estão celebrando, com champanhe, a manutenção do status quo. É esse o resultado que a gente colhe deste tipo de crítica.

Na pré-história das UPPs, nós temos os chamados Mutirões pela Paz, criados pelo senhor e por sua equipe, na Secretaria de Segurança do governo Garotinho, em 1999.

E depois o Gpae [Grupamento de Policiamento de Áreas Especiais].

Exato. De que modo esses seus projetos tentavam evitar ou minimizar estes problemas que hoje estão patentes nas UPPs?

Nunca me ocorreu usar a expressão que hoje é comum: pacificação. Eu acho um equívoco susceptível a todo tipo de manipulação demagógica etc.

Por isso, Mutirão pela Paz, o que é diferente. A ideia de mutirão sugere esforço coletivo e, no nosso caso, apontava para a necessidade de uma mobilização multissetorial, não só comunitária, mas também do governo. Então nós chegávamos não só com a polícia. Tentávamos chegar, discutindo com a comunidade todas as suas grandes questões e o que o Estado tinha de fazer para resolvê-las: saúde, educação, trabalho etc. Nós chegávamos assim.

Mas chegávamos também com a polícia, e uma polícia que nós queríamos que agisse com uma orientação comunitária. Como fazê-lo sem uma preparação anterior? Era se construir o barco enquanto se navegava.

Era presença diária, esforço diário, aprendendo ali com todas as dificuldades, mas era o que se tinha de fazer de imediato. Suprimindo aquela lógica colocada em prática pela história pendular da segurança pública no Rio. Este é o pêndulo: abandono da área ou ocupação militar. Invasão bélica, com pé na porta e desrespeito aos direitos humanos; depois vem um refluxo: não se toca nisso para não se criar problemas, para respeitar os direitos. A história política do Rio aponta para esse pêndulo.

O Brizola fez um esforço louvável, admirável, meritório, de suspender o pé na porta, política tradicional. Rendamos homenagem ao Brizola, pelo esforço que ele fez. Mas o que ele fez para colocar no lugar da política do pé na porta? “Vamos afastar a polícia daí, polícia não tem jeito”. Não houve nenhuma política, propriamente, para transformar esses aparatos do Estado. O esforço era no sentido de suspender essa prática.

Claro que isso não é suficiente. É preciso que haja uma substituição, uma alternativa. De que maneira essas instituições vão lidar com essas populações? Nós não vamos mudar essas práticas? Só vamos afastá-las? Então nós eliminamos as polícias.

Elas são necessárias ou não são? Pode existir um Estado, existindo lei, classes sociais, sem polícia? É possível isso, como é que seria? Como é que a polícia pode ser reconfigurada em um ambiente democrático? Para que lado, para que horizonte nós nos guiamos?

Isso nunca foi objeto de discussão pública, não era questão relevante nas esquerdas, então houve esse processo de suspensão, simplesmente, da presença.

O nosso esforço não era buscar o “meio”, não existe “meio”, não existe posição intermediária nisso. Existe a necessidade de se formular uma política. A ausência de política não é a melhor negação de uma política bárbara. Para negar uma política bárbara você tem que produzir uma política que seja democrática. A gente tentou, então, estar nessas comunidades e oferecer a atividade policial como garantia de direitos, não reproduzindo a velha brutalidade.

Isso funcionou?

Não. Bom, funcionou e não funcionou (risos). Funcionou, porque foi um sucesso enorme onde nós começamos. E não funcionou porque houve um embaraço político.

O governador era o Garotinho. Bom, o leitor vai imediatamente associar essa palavra a um personagem conhecido. E, nesse caso, é importante que haja um esforço de reflexão histórica, porque houve vários personagens que mudaram ao longo da história, em uma direção ou outra.

É importante que nós saibamos que, em 1998, Garotinho foi eleito contra César Maia, aglutinando os partidos de esquerda. A dúvida dos movimentos sociais de esquerda não era votar em Garotinho ou César Maia, era votar em Garotinho ou anular.

E as forças progressistas, que se aliaram, tinham do Garotinho uma imagem muito distante, porque ele fora prefeito bem longe da capital, lá em Campos dos Goytacazes. Tinha feito um mandato que foi muito popular. Ele vinha da esquerda, tinha passado pelo PCB, foi co-fundador do PT e foi pro PDT de Brizola.

Ele era radialista, tinha características populistas. Eu chamava a atenção para evitarmos o “veto estético”. A classe média, às vezes, faz o veto estético.

Você não gosta de um determinado arranjo que parece brega, que é cafona, e a partir daí deduz precipitadamente, atribuições. E, naquele momento, o compromisso que o Garotinho assumiu, no programa de governo, era muito progressista e democrático. Tanto que a maior parte das forças de esquerda estivemos juntos no governo.

Uma outra informação importante: desde o início, a vice-governadora Benedita da Silva começou a subir os morros comigo, quando nós fazíamos os nossos trabalhos do Mutirão pela Paz. Era absolutamente inusitado visitar favelas, e visitar levando as autoridades policiais para um grande debate aberto, nos espaços públicos, para discutir polícia, comportamento policial. Ela passou a estar comigo e nós tínhamos muita visibilidade na mídia, ela acabava aparecendo todos os dias, em todos os jornais.

Avançado o primeiro semestre, o governador me chama no palácio e diz: “Parabéns, beleza de projeto, de trabalho, os resultados são incríveis, a sociedade está satisfeita, aplaudindo. Só que tem o seguinte: o projeto precisa ser qualificado, ter mais consistência”. Eu falei: você está totalmente certo, é exatamente o que a gente precisa.

Ele disse: “Então vamos dar uma parada, uma freada de arrumação”. Aí eu fiquei um pouco preocupado. Como assim uma parada?

E ele: “Continua o que já existe, não vai retroagir, mas não vamos ampliar o projeto para outras favelas até que isso esteja estruturado”. A solução foi sendo protelada. Só bem adiante, no segundo semestre, que o governador me chama de novo para dizer que ia se chamar Vida Nova e que não ia envolver polícia. E me apresentou um projeto de intervenção social nas favelas que era apenas a cópia, já esmaecida, do velho clientelismo, o mais primitivo.

Eu usei essa expressão e ele me acusou de estar influenciado por intelectuais da USP (risos). Mas como denominar esse tipo de prática?

Práticas que consistiam em quê?

Cooptação de lideranças locais que depois serviriam como os cabos eleitorais.

Há muitas denúncias de que isso é o que acontece hoje.

Continua acontecendo. Essas políticas são sempre de interesse de quem está no poder. Você dá um pouquinho de recurso aqui ou ali, valoriza lideranças locais cooptando-as e faz disso um mecanismo de reprodução política. São cabos eleitorais que, depois, vão barganhar com a comunidade local. Essa é a história do Rio de Janeiro nas áreas populares: clientelismo, o mais rastaquera, o mais primitivo.

Enfim, nós já estávamos em início de rota de colisão, a coisa não acabou bem, eu acabei exonerado depois.

Tudo isso associado a pretensões eleitorais do Garotinho para o governo federal.

Sim. O que o governador queria era tirar a Benedita do foco. Ela seria a candidata à prefeitura do ano seguinte, o ano 2000. E, se ela continuasse no Mutirão pela Paz, com aquela visibilidade, ela se tornaria realmente uma força importante.

Ele já tinha se comprometido a apoiá-la, mas ele não tinha esse propósito, de fato. Tinha outras intenções. E era interessante que ela não estivesse muito forte para fazer sombra a ele. Esse era o cálculo, o mais mesquinho, o mais trivial. E muito lamentável.

No final do ano, nós tivemos um encontro, num café da manhã. O Garotinho abre, em cima da mesa, uns papeis com os resultados de uma pesquisa, na qual ele era o governador mais bem avaliado do país, já no final do ano.

Ele estava felicíssimo, e nós também, porque houve um esforço muito grande naquele ano. Havia méritos no governo dele, só que a ambição individualista, carreirista, falou mais alto. E isso se evidenciou quando ele nos disse: “Com esse resultado, eu sou candidato à Presidência da República”. Ele falou isso para os cinco coordenadores de secretaria – eu e mais quatro.

Quando ele disse isso, eu gelei. Porque eu compreendia que o candidato do nosso campo já existia: era o Lula. Se ele se lança candidato, só tem um espaço pra ele: a direita. A esquerda era o espaço do Lula. Isso significa uma inflexão política no governo.

No primeiro ano de governo, ele foi inimigo do PMDB no Rio, ele brigava com o Sérgio Cabral e o Jorge Picciani, na Assembleia. Era uma queda de braço permanente com o PMDB. Eu deduzi que haveria um recuo: ele se uniria ao PMDB. A partir daí, todas as nossas políticas iriam por água abaixo. E, efetivamente, foi o que aconteceu.

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