Olhar à direita!

11/02/2010 at 12:47 (Hermano de Melo)

Hermano de Melo*

OLHAR À DIREITA (gravura inspirada na famosa tela do pintor francês Eugéne Delacroix "A liberdade guiando o povo". Na obra original, a "liberdade" segura, evidentemente, a flâmula francesa, símbolo da revolução. E olha para o lado esquerdo).

Desde que foi assinado pelo presidente Lula, em 21/12/2009, o decreto 7.037, que trata do 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos – o PNDH-3 – sofre de intensos bombardeios por parte de alguns setores da mídia nacional e de segmentos conservadores da sociedade brasileira. Esses ataques visam principalmente temas específicos que constam do projeto elaborado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, sob a tutela do ministro Paulo de Tarso Vannuchi, tais como, a questão agrária, o controle da mídia, militares e documentos da ditadura, religião, aborto, relação homoafetiva, dentre outros.

Logo após a divulgação do PNDH-3, porém, a pressão dos militares foi tanta que obrigou o governo Lula a alterar parte do decreto original relativa à repressão política no Brasil. Assim, em 15/01/2010, foi publicada no Diário Oficial da União uma segunda versão na qual se suprime a expressão “repressão política”, e embora se mantenha no texto a ‘Comissão Nacional da Verdade’, a nova versão retira dela a capacidade de “apuração e esclarecimento público”, como constava antes, dando-lhe apenas a atribuição de “examinar as violações dos direitos humanos” praticadas durante o regime militar (1964-1985)”. As duas versões, no entanto, afirmam que o exame das violações tem o objetivo de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”, e ambas citam entre as atividades da Comissão “o esclarecimento circunstanciado de torturas, mortes e desaparecimentos” (JusBrasil, 15/01/2010).

Mas, afinal de contas, por que o PNDH-3 provoca tanta polêmica desde o seu nascedouro, uma vez que é apenas uma espécie de “protocolo de intenções” que ainda tem de passar pelo Congresso Nacional e pelo Judiciário para eventualmente se tornar lei? A resposta mais simplista talvez seja porque o documento mexe com os interesses e com o bolso de milhões de brasileiros, em particular daqueles que se situam em camadas mais privilegiadas da população. No entanto, é possível também que a discussão e aprovação do documento tenham deixado de lado segmentos importantes da sociedade brasileira, que não tiveram oportunidade (ou não quiseram) discuti-lo nas ocasiões em que isso foi feito.

É bom que se diga que o 3º PNDH é fruto da participação de pelo menos 14 mil pessoas em todo o Brasil, de várias entidades da sociedade civil, movimentos sociais, poder público, etc.,cuja construção durou mais de dois anos até ser aprovado na XI Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em dezembro de 2008, em Brasília-DF. É importante lembrar ainda que o 3º PNDH faz parte do que se poderia chamar de uma trilogia, ou seja, é a terceira versão do programa implantado no governo FHC (1996 e 2002) e que continua agora no governo Lula (2009/2010). Estudo comparativo publicado pela Folha Online (11/01/2010) mostra as diferenças básicas existentes entre as três versões em relação aos itens aborto, homossexuais, fortunas, agronegócio, sem-terra, reforma agrária e invasões, controle da mídia, militares e documentos da ditadura, transgênicos e religião. O estudo da Folha revela que, apesar de alguns excessos contidos em alguns itens – que poderão ser sanados quando da elaboração dos projetos-de-lei pelo Executivo ou Legislativo – na maioria deles o 3º PNDH apenas dá seqüência e amplia o que vinha sendo feito no governo FHC!

Existem, no entanto, muitas vozes dissonantes em relação ao Programa e é bom que assim seja. Para o repórter José Casado (Globo, 08/01/2010), por exemplo, o 3º PNDH é “uma miríade de promessas para este ano eleitoral:da regulação de hortas comunitárias à revisão da Lei da Anistia; da taxação de grandes fortunas às mudanças nas regras dos planos de saúde; da legalização do casamento homossexual à fiscalização de pesquisas de biotecnologia e nanotecnologia”. E talvez seja esta a maior crítica que se pode fazer ao PNDH-3: Por que lançar um programa dessa magnitude faltando apenas 11 meses para o encerramento do governo Lula, em ano eleitoral e com prazo tão exíguo para sua apreciação e execução?

Mas, evidentemente, isso não pode servir de argumento para alguns articulistas locais mais exaltados que vêem no 3º PNDH uma “Práxis amoral”, “Coalizão de forças trotskistas, castristas que visam botar fogo neste País”, “O decreto trotskista de Lula”, “Programa criado pelo grupo de guerrilheiros da Casa Civil”, “Entranhas totalitárias”, e outros absurdos mais. A esses ilustres senhores (e senhora) é bom lembrar que, se realmente o Brasil estivesse diante de um governo que visa implantar um Estado totalitário, ou algo parecido, o PNDH-3 não seria publicado e divulgado como um conjunto de diretrizes de governo para ser apreciado pelo Congresso Nacional e Judiciário, e ser aprovado ou rejeitado. Ele seria empurrado goela abaixo, sem discussões, nos mesmos moldes que era feito no período da ditadura de 1964-85, de nefasta lembrança.

Nesse sentido, é importante a leitura do artigo da jurista, professora de direitos humanos, procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Flavia Piovesan, publicado no Estadão.com.br., de 17/01 passado, quando ela diz, dentre muitas outras coisas importantes: “Se na época dos regimes ditatoriais, a agenda dos direitos humanos era contra o Estado, com a democratização os direitos humanos passam a ser também uma agenda do Estado – que combina a feição híbrida de agente promotor de direitos humanos e, por vezes, agente violador de direitos”. Daí a importância do PNDH-3.

* Escritor e acadêmico de jornalismo.

** Publicado no jornal Correio do Estado de 11/02/2010.

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