Crise de Ganância II

25/08/2011 at 21:35 (Hermano de Melo)

Hermano Melo*

Momentos antes de desembarcar no aeroporto de Madrid (18/08/2011) para uma visita de quatro dias, e participar da Jornada Mundial da Juventude na Espanha, o Papa Bento XVI fez uma declaração sobre a atual crise financeira mundial: “A economia não pode funcionar como uma economia autorregulada. O homem deve estar no centro da economia e este não é o lucro e sim a solidariedade”. E completou: “Isto se confirma na crise atual. A economia não pode ser medida pelo máximo lucro. É preciso colocá-la a serviço da proteção do trabalho para todos”. A fala de Bento XVI foi oportuna, no momento em que a economia mundial em geral – e a espanhola em particular – enfrenta sérias dificuldades para sair da recessão, que deixa um em cada cinco trabalhadores desempregados, dos quais boa parte é jovem.

O Papa Bento XVI na Espanha: sermão para a crise financeira.

Dias antes (12/08/2011), o bilionário brasileiro Eike Batista – oitavo mais rico no ranking da revista Forbes – concedeu entrevista ao Globo, após perder a bagatela de R$ 19,8 bilhões com a atual crise financeira desde o início do ano. Ao perguntarem se ele não perdia o sono ao constatar que só neste mês perdeu cerca de R$ 5 bilhões com a desvalorização das ações do grupo EBX, ele respondeu: “Não. Os meus ativos são à prova de idiotas. As empresas do grupo vão gerar US$ 15 bilhões de caixa até 2015, e como tenho entre 60 e 70% das empresas, você pode fazer o cálculo. As minhas companhias são uma espécie de poupança, mas com retorno gigante”. E o senhor não tem medo de ser rebaixado na lista dos mais ricos da revista Forbes? “Não, porque todo mundo vai baixar junto, né? Quando a maré baixa, mademoiselle, os barcos bonitos, os iates de alto luxo e as canoas baixam”.

Mesmo perdendo cerca de 5 bilhões de reais por mês com a crise financeira, Eike Batista permanece como um dos mais ricos do mundo.

Mas não foi só Eike Batista quem “perdeu” com a crise especulativa mundial. Sob o título, “E a fortuna encolheu…”, Bruno Villas Boas (oglobo.com.br, 21/08/2011) assegura que pelo menos dez dos mais ricos do país perderam R$ 30,8 bilhões com a queda nas ações na Bolsa brasileira. Dentre outros, Dorothéa Steinbruch e família (Grupo Vicunha) – R$ 5,1 bilhões; Jayme Garfinkel (Porto Seguro) – R$ 1,23 bilhão; filhas de Amador Aguiar, fundador do Bradesco – R$ 225,4 milhões e R$ 185,6 milhões; João Alves de Queiroz Filho (Hypermarcas) – R$ 1,2 bilhão em oito meses; Edson Godoy de Bueno e sua ex-mulher Dulce (grupo Amil) – R$ 342,97 milhões. E o bilionário Antônio Ermírio de Moraes, 83 anos (e parentes), (papel e celulose Fibria) – R$ 1,6 bilhão.

Crise financeira: a única coisa em alta é a ganância.

É bom, porém, não se impressionar com os números acima, pois em momento algum o capital perde! Como diz Manuel Freytas (CMI 01/08/2011): “O capitalismo não é somente um modelo econômico, senão um sistema de dominação mundial estabelecido como civilização única. No atual desenho da ‘economia mundial transnacionalizada’ não são os governos nem os países quem decidem o que, quando e para quem se produz em escala mundial, senão as corporações e os bancos transnacionais, que têm o domínio sobre as estruturas econômicas do sistema capitalista: de produção, comercialização e financeira”. Tudo indica, portanto, que a atual crise é um repeteco da de 2008/09, sobretudo de ganância, e com um agravante: o consumismo desenfreado nos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China).

O capitalismo nunca perde!

Nesse sentido, Leonardo Boff faz um alerta na Carta Maior de 20/08/2011: “Afunilando as muitas análises feitas acerca do complexo de crises que nos assolam, chegamos a algo que nos parece central e que cabe refletir seriamente. As sociedades, a globalização, o processo produtivo, o sistema econômico-financeiro, os sonhos predominantes e o objeto explícito do desejo das grandes maiorias são: consumir sem limites. Criou-se uma cultura do consumismo propalada por toda a mídia. Há que consumir o último tipo de celular, de tênis, de computador. Basta ver que 66% do PIB norteamericano não vem da produção, mas do consumo generalizado”.

O teólogo Leonardo Boff alerta para os perigos do consumismo desenfreado.

Aliás, corroborando com o que diz Boff, basta ler a notícia divulgada pela Agência Estado em 21/08/2011. Dados da União Internacional de Telecomunicações indicam que há quase o mesmo número de celulares nos países em desenvolvimento que pessoas com acesso a banheiros (será?). Enquanto em 2002 a taxa celular/habitante no Brasil era de apenas 20%, em 2010, o País passou a ter mais celular que habitantes. E a manchete de primeira página do Correio do Estado de 22/08 último, diz quase tudo sobre a corrida consumista dos últimos tempos: “Uso de cartão de crédito cresce 17% e até ambulantes aceitam”.

Há quase o mesmo número de celulares nos países em desenvolvimento que pessoas com acesso a sanitários

Embora essa “era de abundância” que se vivencia hoje no Brasil e nos países emergentes seja importante, é preciso, porém, recolocar o homem no centro de todo processo econômico-financeiro mundial, como quer Bento XVI. Como disse alguém no encerramento do 3º Seminário de Ciberjornalismo da UFMS (18/08/2011): “Está certo que o celular de hoje é melhor que o “tijolão” que se tinha há uma década. Com o atual, é possível fazer quase tudo – enviar mensagens, tirar fotos, filmar, etc. – mas será que dá pra falar com alguém por ele?”

Será que dá para falar com alguém por ele?

*Escritor, Professor e Acadêmico de Jornalismo.

Artigo publicado no Jornal Correio do Estado em 25 de agosto de 2011.

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O ônibus e o peru

12/08/2011 at 18:12 (Hermano de Melo)

Hermano Melo*

Reportagem publicada no jornal “O Tempo”, de Belo Horizonte (MG), em 08/08/2011, assegura que: “Se um peru disputasse uma corrida com um ônibus no horário de pico em BH, ganharia com larga vantagem. Enquanto a ave pode chegar a 25 km/h, os ônibus têm um desempenho de 20 km/h, em média”. E na região central, onde a velocidade média é de 9 km/h, a derrota dos coletivos seria ainda mais esmagadora. Assim, os cerca de 1,5 milhão de usuários da capital mineira que dependem do transporte público, circulam todos os dias, a bordo de coletivos que andam num ritmo mais lento que a ave do gluglu! E mais: dados da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte (BHTrans), revelam que, se o belo-horizontino voltasse no tempo e adotasse o cavalo para se locomover, andaria em um ritmo duas vezes mais rápido que os carros (média de 25 km/h do automóvel contra 50 km/h do animal em galope).

E pelo que se vê nas ruas de BH hoje, é provável que não haja mudança significativa nesse cenário nos próximos anos: em horas de rush, os engarrafamentos são quilométricos, os sinaleiros de três tempos se multiplicam e a educação dos motoristas mineiros deixa a desejar. Para o engenheiro de trânsito, Osias Batista, “a velocidade do trânsito da capital é muito baixa e o ônibus não é prioridade na cidade”. E o gerente de planejamento da BHTrans, Célio Freitas, diz que “mesmo se cumprirmos todo o plano de mobilidade da prefeitura, o automóvel permanecerá com essa mesma velocidade (25 km/h)”. Para melhoria do trânsito em BH, a prefeitura prevê até a Copa de 2014, a construção de ciclovias, a ampliação do metrô e implantação do ônibus de alta capacidade em vias exclusivas, o BRT. Para Freitas, “com o BRT, as pessoas irão gastar metade do tempo que levam hoje nas viagens. O segundo passo é convencer os motoristas a deixarem o carro em casa”.

Se a situação do transporte coletivo na capital mineira é um caos, ela não é muito diferente nas demais capitais brasileiras. Em São Paulo, por exemplo, constatou-se que a velocidade média dos carros no trânsito paulista é de 12 km/h, comparável a de uma galinha! E foi devido a essa lentidão, que a ONG “SOS Mata Atlântica”, em parceria com a F/Nazca e Pródigo, criaram uma campanha intitulada “Vá de galinha”, disponível sob a forma de vídeo no You Tube, que compara a velocidade de alguém dirigindo um carro no trânsito paulista (o ovo) com outra que anda a pé (a galinha) para chegar a um determinado ponto da cidade. E apesar da galinha andar a 15 km/h, ela chega ao destino primeiro que o ovo, devido à lentidão no trânsito. Para o diretor da SOS Mata Atlântica, Mário Mantovani, isso acontece porque “o governo estimulou a compra de automóveis, mas não investiu em transporte de massa”.

Em Campo Grande, MS, os ônibus ainda circulam com velocidade acima da do peru de BH, embora o trânsito seja quase tão caótico quanto o de lá: os engarrafamentos são comuns nas horas de pico, as faixas exclusivas de ônibus inexistem e o desrespeito à sinalização uma constante. Para o diretor do Detran/MS, Santos Pereira, o maior problema no trânsito campo-grandense é a falta de educação dos condutores e o desrespeito à harmonia das vias: “Um pedestre não consegue atravessar a Afonso Pena fora da faixa de pedestre. O motorista não respeita”. Segundo Pereira, entre 1º a 18 de julho ele assinou 1.823 portarias de infrações de trânsito. Desse número, pelo menos 20% resulta em cassação ou suspensão de dirigir. Ele prevê ainda que cerca de 400 CNHs (Carteira Nacional de Habilitação) serão cassadas até o final deste ano contra 200 no ano passado e 100 em 2009.

Evidente que vários fatores são responsáveis pelos problemas de trânsito na maioria das cidades brasileiras, mas um dos mais importantes é sem dúvida o aumento na frota de veículos dos grandes centros urbanos nos últimos anos. Em setembro do ano passado, por exemplo, Campo Grande já era a 7ª capital com mais carros per capita do país, com um carro para cada 2,04 habitantes, e a média de crescimento anual da frota é de 8,3%, cerca de 30.950 novos carros incorporados à frota da Capital por ano, uma média de 2.570 por mês ou 85 por dia! (Daniela Arruda e Silvia Tada/Correio do Estado, 21/09/2010).

O problema é que enquanto o transporte individual cresce, o coletivo se deteriora tanto em quantidade quanto em qualidade,o que leva muitas pessoas a fazerem das “tripas coração” para adquirir o tão sonhado carro zero e abandonar o ônibus,o BRT,ou o metrô. Resultado: as ruas se entopem de carros, os acidentes de trânsito aumentam e a poluição idem. Daí a necessidade do poder público investir pesado em transporte de massa, que seja ao mesmo tempo limpo do ponto de vista ambiental, rápido, barato e confortável, a fim de convencer os usuários a deixarem o carro na garagem. Caso contrário, em futuro breve nos grandes centros urbanos,os ônibus não vão perder corrida apenas para perus e galinhas, mas até para lesmas!

* Professor, Escritor e Acadêmico de Jornalismo.

Artigo publicado no jornal Correio do Estado, em 12 de agosto de 2011.

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Encontro Cultural da Chapada

02/08/2011 at 23:24 (Hermano de Melo)

Hermano Melo*

Enquanto na semana passada acontecia por aqui a 12ª Edição do Festival de Inverno de Bonito (MS), na minúscula Vila de São Jorge (700 habitantes), a 37 km de Alto Paraíso (GO) e 240 km de Brasília, DF, cerca de dez mil pessoas – principalmente jovens – participavam do 11º Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros (22 a 30/07/2011). Embora o pano de fundo de ambos os eventos fosse a exuberante natureza local, águas cristalinas, fauna aquática diversificada, mergulhos, cavernas, grutas e cachoeiras, a semelhança fica nisso. É que ao invés de um festival “mais para turista ver”, como o de Bonito hoje, regado a shows musicais com artistas famosos (Ângela Costa/Correio do Estado, 28/07/2011), o Encontro da Vila São Jorge é festa essencialmente popular, com a participação de grupos regionais de violeiros, músicas e danças afro-brasileiras, forró, circo, aldeia indígena multiétnica, cursos e oficinas de xilogravura, gastronomia, capoeira e até mesmo agricultura urbana!

Assim, no Encontro Cultural da Chapada deste ano, além de quilômetros de trilhas que levam a dezenas de cachoeiras e sítios preservados que ficam em torno de Vila de São Jorge, foi possível caminhar de volta às origens da festa, e priorizar, sobretudo, a cultura tradicional da região: a Caçada da Rainha de Colinas do Sul, a Catira e a Curraleira dos foliões de São João D’Aliança, a Sussa do Sítio Histórico Kalunga, e o Congo da comunidade de Niquelândia. Como disse um escritor local: “Em São Jorge, música, dança e fé, se fundem em um espetáculo que traduz a essência dos verdadeiros representantes da Chapada”. Some-se a isso, a realização do “I Encontro de Culturas Gastronômicas da Chapada dos Veadeiros”,com pratos típicos goianos incrementados com frutos do Cerrado.

Durante o evento, portanto, o dia-a-dia na Vila de São Jorge poderia ser resumido assim: pela manhã/tarde,ecoturismo de caminhada, contemplação e mergulho; à tarde, oficinas e cursos; à noite, espetáculos de dança e música no palco principal e badalação noturna. Quanto aos passeios, melhor ir primeiro ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros – 65 mil hectares de cerrado preservados e altitudes que variam de 600 a 1700 metros – engajar-se num dos grupos com guia credenciado e optar por uma das trilhas: a dos Saltos, ou a dos Cânions e Cachoeiras Cariocas (é bom fazer as duas em dias alternados). Depois, aventurar-se por alternativas de passeios: Cachoeira do Raizama, Vale da Lua, Encontro das Águas, Cachoeiras de Almécegas e São Bento,e muitas outras. No retorno, uma cerveja bem gelada e almoço no restaurante/pousada da Nenzinha!

Um dos destaques do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros deste ano foi, sem dúvida alguma, a instalação de uma aldeia multiétnica indígena nos arredores de São Jorge, com cerca de 100 índios de diversas etnias. Os Yawalapiti, de Mato Grosso, foram os anfitriões da festa e responsáveis pelo início da construção de uma oca típica xinguana, auxiliados pelas demais etnias e pelos Kalungas. As outras etnias indígenas presentes eram os Kayapó, Kaxinawá, Parecí, Fulni-ô e Krahô. Quem participava do encontro cultural podia ir à aldeia multiétnica e contatar os índios acampados, conversar com eles, pintar o corpo, apreciar suas bebidas e comidas, e comprar produtos do artesanato indígena. A ideia é que, a partir deste ano, cada edição da Aldeia tenha uma etnia anfitriã para comandar as vivências e receber etnias convidadas. Em tempo: o banho de rio ao lado da aldeia é supimpa!

Em resumo, pode-se dizer que essa grande reunião de tipos e saberes, faz do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros um referencial no debate de ideias e proposições que favorecem a criação e efetivação de políticas públicas para as comunidades tradicionais brasileiras. Deve-se ressaltar ainda a realização de oficinas voltadas para a cultura regional, como o IV Encontro de Capoeira Angola e a IV Reunião do Colegiado Indígena.

Destaque também para a mostra de cinema, onde foram exibidos filmes vencedores do XIII Festival Internacional de Cinema Ambiental e curtas-metragens de cineastas goianos. Foi exibida a série “O Povo Brasileiro”, co-produção entre a TV Cultura, GNT e Fundação Darcy Ribeiro, dirigida por Isa Grinspum Ferraz.

Mas, embora não chegue de forma alguma a empanar o brilho do Encontro, nem tudo são flores na Chapada. É que metade dos 37 km de estrada que separam o município de Alto Paraíso da Vila de São Jorge é de chão batido! Uns dizem que isso é para dificultar o fluxo de turistas e preservar o meio ambiente; outros afiançam que é para favorecer caminhões-guincho e borracharias; uma terceira versão assegura que o motivo principal é impedir a emancipação da Vila e mantê-la sob o controle de Alto Paraíso; uma última vertente, porém, assegura que a pavimentação completa da rodovia deveria ter sido concluída há pelo menos quatro anos, mas que a verba foi desviada para outros fins. Em qual delas acreditar?

* Professor, Escritor e Quase-Jornalista 2011.

Artigo publicado no Jornal Correio do Estado em 02 de agosto de 2011.

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